Ele era um homem de gostos simples, preferia apenas o melhor de tudo. Boas bebidas, bons discos, bons livros, bons amigos. Por outro lado, tinha bem claro aquilo de que não gostava: despedidas. Na verdade, ele dizia não acreditar em despedidas, isso mesmo, acreditar. Tal como alguns não acreditam em Deus, um grande amigo não acreditava em dança e sua ex-namorada não acreditava em amor. Simples assim, não acreditava em despedidas. Fugira de, segundo as suas contas, trinta e sete despedidas até então, jamais fora a um último dia de aula, sentiu-se tentado a ir à formatura do ensino fundamental, mas resistiu, quanto à do ensino médio nem mesmo passou perto. No primeiro emprego pediu demissão por telefone, não voltou nem mesmo para buscar suas coisas, temia que pudesse dizer adeus, ele podia comprar outros objetos, não podia se arriscar a perder sua recordista sequência. No segundo emprego passou o último dia sem comentar nada com ninguém e saiu como num dia qualquer, os companheiros sequer faziam ideia de que era seu último dia. Não foi ao enterro de sua mãe. Desde quando a ex e única namorada de toda vida terminou tudo, nunca mais falou com ela, mas muito menos se despediu, nunca a deixou ir e não se satisfaz com isso, ela ainda está com ele, ao menos é assim que seu pai o vê – seu pai é psicólogo, pensa que sabe tudo do filho – dizia que o garoto negava a perda, por isso jamais soube se despedir, ele via razão no que o pai dizia, não dizer adeus é a maneira que encontrou para não colocar um ponto final, então, literalmente, ele ainda está na primeira série, na segunda série, na terceira série, na quarta série, na quinta série, na sexta série, na sétima série, na oitava série, no primeiro, segundo e no terceiro ano do ensino médio, sua mãe ainda vive, ainda trabalha no primeiro emprego, ele ainda namora com ela, ainda trabalha no segundo emprego, ele ainda está vivo.
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domingo, 6 de outubro de 2013
Despedida.
O clima ficou muito tenso, ele queria aproveitar a companhia dela, queria ficar com ela o tempo todo, queria amá-la, mas não sabia o que fazer. Foi uma grande surpresa vê-la no aeroporto o esperando, uma ótima surpresa, mas ele não esperava, nunca imaginaria.
Ele temia, temia o que aconteceria daqui pra frente, quanto tempo ainda teriam, quando, e se, chegaria finalmente essa despedida. Queria aproveitá-la, amá-la.
"Prretinho, o que pensa?" Seu português melhorou muito, o sotaque continuava muito carregado, mas os últimos meses no Brasil lhe foram proveitosos, seu corpo delgado escureceu, adquiriu um tom de bronze, seu guarda-roupa mudou completamente do que estava habituada, shortinhos curtos, biquinis, coisas que nunca usaria na Rússia, ela mudou tanto, mas o sorriso dela continuava o mesmo, aquele que fez Martin se apaixonar.
"Não é nada, querida, pensando em nós, nesses meses felizes." Martin adquiriu uma feição cansada, pesada. Sua namorada gostava de sair, ele não sabia dizer não, não sabia reclamar, ele queria dar o melhor para ela, queria amá-la, aproveitá-la. Ele estava cansado, mas estava tão feliz que não queria que acabasse nunca, mas sabia que logo teriam de tomar uma decisão, uma decisão séria e importante.
A família da Russa desaprovou sua decisão, reprovou a relação entre os dois, todo dia seus pais ligavam para que ela voltasse para casa, que deixasse de lado essa loucura de viver longe deles, num país desconhecido, que abandonasse esse amor, "ninguém vive só de amor" eles diziam. E ela se chateava, ele se chateava, eles se chateavam juntos e se cansavam, tentavam esquecer, ignorar, sabiam que deviam apenas aproveitar esse tempo juntos, deviam se amar enquanto podiam.
"A coisa tá russa", Carlos e Danilo diziam, apenas isso, ele mal os via, apenas quando conseguiam sair os quatro juntos, e ainda sim não desgrudava dela, torciam para que tomassem logo uma decisão, que se despedissem ou ficassem logo juntos por aqui, queriam que fossem felizes, mas queriam mais seu amigo.
Ele se encontrou novamente no Galeão, dessa vez chegou a tempo, e esse tempo passava tão rápido, não podia aproveitá-lo todo, esse tempo doía ao passar. Sua cabeça doía de tanto que chorava, chorava indiscriminadamente, sem a menor vergonha.
"Eu não conseguirei viver distante, é verdade... mas não dá, não dá mais pra viver assim, é cansativo, é desumano, eu não estou conseguindo mais ser tão feliz, é limitante... essa foi a única saída, a decisão mais sensata... eu nem sei porque to me esclarecendo, isso não é uma despedida, eu prometo que não, não é uma despedida! Vamos nos ver sempre, claro, só ficará um pouco mais difícil... mais distante, mas meu coração estará sempre com vocês." Ele disse em meio a lágrimas, abraçando sua família, deu um beijo longo em todos e embarcou com a Russa para Moscou, para a vida dos dois.
domingo, 18 de agosto de 2013
A Russa.
O olhar azul claro a penetrava, ela sofria para evitar, era uma tortura, estava em guerra com a vontade. Olhos azuis difíceis de invadir mas, quando dentro, não se quer mais sair, olhos de um mar gelado. Nadou, nadou, nadou naquele olhar, caiu em perdição maior ainda, a pele de neve avalanchou sobre ela, um abraço, apenas a natureza seguindo seu caminho, congelada por aquele abraço tão quente, não podia ir a lugar nenhum, entregou-se. As delicadas mãos tateavam aquele corpo-montes-urais, perdia-se em pela neve daquele corpo agora deserto. Aninhou-se naqueles cabelos dourados, riqueza maior que a de qualquer czar, sua riqueza agora, mais rica que qualquer outra pessoa jamais havia sido. Respirações sincronizadas, corações um só, e aquela boca vermelha comunista querendo ser uma só com a sua, iguais, uma só boca, uma só pessoa. A Russa foi o seu primeira amor.
A Russa.
''Licença, você saber que ônibus eu pegarr para Lapa?'' Ela perguntou. "Eu to indo pra lá também, a gente pode ir junto..." Ela era branca, muito branca, pálida. Ele achou legal, via muitas meninas estrangeiras, mas ela era diferente.
"Onde ficar circo voadorr? Meu irmão me espera lá" Ele apontou a direção e se despediu, quando ela estendeu a mão, ele deu um beijo em seu rosto e um abraço. Ela também era alta, quase da altura dele. E era branca, tão branca que ficou rosa de corada pela intimidade dele. Quando ela ia embora disse "Fica com a gente, bebe cerveja" e ele ficou um pouco, beberam umas cervejas, riram muito. "Desculpa, eu preciso ir, marquei com uns amigos..." Ele disse, arrependido, sabia que podia ficar mais, mas ela era muito reservada, o irmão dela estava lá, não poderiam ficar juntos, preferiu ir. "Tudo bem, foi bem legal, legal." Ela respondeu, e deu-lhe um abraço, um beijo no rosto, e um guardanapo. "Se querer me ver..."
Ele chegou com o maior sorriso estampado na cara, na cara de bobo apaixonado. "E aí, Martin! Viu um pássaro azul? Por que esse sorrisão?" Perguntou um dos amigos à mesa do bar. "Viu a Juliana Paes pelada, pra ficar com essa cara de bobo?" O outro falou, rindo. "Claro que não, idiotas, apenas conheci uma garota incrível, agora pouco." E lhes contou sobre a estrangeira. Quando terminou, seus olhos brilhavam. "De onde ela é, afinal?" Disse um dos amigos. "Não sei, brother, acho que da Rússia, esqueci de perguntar..." "Ih, cara, a coisa tá russa ein!" Zombou o segundo. "Que trocadilho horrível, cara, mas aí, abre logo o guardanapo, deixa a gente ver!" O primeiro falou, cutucando Martin. Ele abriu o guardanapo com calma, olhou, leu, olhou para os dois e exclamou "Esqueci de perguntar o nome dela né" Eles sem entender pegaram o guardanapo das mãos dele e leram "Ю́рьевна 8888-8888". "Acho que é russo", explicou Martin. "Liga pra ela, liga pra ela" Eles diziam em coro. Mas ele se recusava, "vai logo, cara, quero ver tu ler o nome dela." "Não, depois eu ligo... não quero ser tão fácil assim."
- Oi... aqui é o Martin, o cara que tu conheceu ontem em Copacabana... Isso, que te ajudou a ir pra Lapa, uhum, então, queria saber se, sei lá, a gente não podia ir pra outro lugar hoje, pra eu te apresentar o rio. Hoje? Beleza! Te encontro lá. Até mais. Ei- mais uma coisa... eu acabei derramando cerveja no guardanapo ontem... não consegui ler o teu nome... ahn? como? ah, tá, entendi... com dois y? tá bom então, depois nos vemos. Até mais.
"Cara, tem certeza que ela vem?", perguntou seu amigo. "Claro, ela deve estar perdida... ela não sabe andar muito bem pela cidade, sei lá." "Como é o nome dela? Você perguntou?" disse o outro. "Perguntei sim... é bem diferente... Ah é ela ali! A alta, loira, gata demais né? Vou lá chamá-la" "A coisa tá russa" Seus amigos disseram um para o outro. "Essa aqui é a garota que eu falei que conheci ontem. Esse aqui é o Carlos. E esse aqui é o Danilo - ele é engraçadinho, não deixa ele te zoar muito." "Martin achou teu nome lindo" Danilo falou ao cumprimentá-la. "Ah... obrrigado" Ela falou, desviando o olhar de Martin, corando novamente. Um pouco depois mais 2 amigas dela chegaram, e enquanto os amigos se conheciam, Martin foi fumar, e ela foi com ele.
"Você não entender meu nome, né?" "Ele é meio complicado..." Ele disse, sem jeito. "Como você me chamar?" Ela perguntou, olhando com seus olhos azuis nos dele. "Russa... tu é a Russa.", "Você é o brrasileiro então" Ela respondeu rindo. "Não, brasileiro é sem graça... todos são brasileiros aqui." "Então algo diferrente em você... eu gosto da sua cor... na rússia todo ser branco, bem branco" "Quer me chamar de marrom?" "Marrom? Marrom é black em brasileiro?" "A gente fala português, e black é preto, mas é errado chamar de preto." Ela ficou chateada e bufou, sentou-se na calçada, calada. Ele se sentou ao seu lado, sorriu e disse "Pretinho... pretinho é carinhoso." "Eu gostar de você, prretinho." Ela disse, se aproximando dele. "Eu gosto de ti..." e se beijaram.
Passou-se a semana, e eles se viram todos os dias, no início foram ao Cristo Redentor, ao Pão de Açúcar, mas se cansaram, não queriam fazer nada, só ficar juntos, ela ia embora logo, e provavelmente não se veriam mais. Seus amigos ligavam para ele e ele dizia que não poderia sair, que estava com ela, e eles sempre respondiam "A coisa tá russa, ein.". Ela estava aprendendo a falar português, aprendeu alguns palavrões primeiro, e passou para conjugação, algumas expressões, saía com amigas brasileiras, quando Martin estava no trabalho.
Martin foi se despedir dela no Galeão, mas ficou preso no trânsito, quando chegou lá, o vôo dela já tinha partido, ele se enfureceu, gritou, chorou, não acreditava que a perdeu, para sempre, sem um último abraço, sem um último beijo. Ele ficava repetindo para si mesmo "A coisa tá russa, a coisa tá russa, a coisa tá russa.' Com a cara colada no vidro do aeroporto, vendo os aviões decolarem e pousarem. "Não, a coisa estar prreta." ele virou e a viu lá "sérrio, meus pais me matar quando descobrrir essa loucurra, a coisa tá prreta, Martin."
"Onde ficar circo voadorr? Meu irmão me espera lá" Ele apontou a direção e se despediu, quando ela estendeu a mão, ele deu um beijo em seu rosto e um abraço. Ela também era alta, quase da altura dele. E era branca, tão branca que ficou rosa de corada pela intimidade dele. Quando ela ia embora disse "Fica com a gente, bebe cerveja" e ele ficou um pouco, beberam umas cervejas, riram muito. "Desculpa, eu preciso ir, marquei com uns amigos..." Ele disse, arrependido, sabia que podia ficar mais, mas ela era muito reservada, o irmão dela estava lá, não poderiam ficar juntos, preferiu ir. "Tudo bem, foi bem legal, legal." Ela respondeu, e deu-lhe um abraço, um beijo no rosto, e um guardanapo. "Se querer me ver..."
Ele chegou com o maior sorriso estampado na cara, na cara de bobo apaixonado. "E aí, Martin! Viu um pássaro azul? Por que esse sorrisão?" Perguntou um dos amigos à mesa do bar. "Viu a Juliana Paes pelada, pra ficar com essa cara de bobo?" O outro falou, rindo. "Claro que não, idiotas, apenas conheci uma garota incrível, agora pouco." E lhes contou sobre a estrangeira. Quando terminou, seus olhos brilhavam. "De onde ela é, afinal?" Disse um dos amigos. "Não sei, brother, acho que da Rússia, esqueci de perguntar..." "Ih, cara, a coisa tá russa ein!" Zombou o segundo. "Que trocadilho horrível, cara, mas aí, abre logo o guardanapo, deixa a gente ver!" O primeiro falou, cutucando Martin. Ele abriu o guardanapo com calma, olhou, leu, olhou para os dois e exclamou "Esqueci de perguntar o nome dela né" Eles sem entender pegaram o guardanapo das mãos dele e leram "Ю́рьевна 8888-8888". "Acho que é russo", explicou Martin. "Liga pra ela, liga pra ela" Eles diziam em coro. Mas ele se recusava, "vai logo, cara, quero ver tu ler o nome dela." "Não, depois eu ligo... não quero ser tão fácil assim."
- Oi... aqui é o Martin, o cara que tu conheceu ontem em Copacabana... Isso, que te ajudou a ir pra Lapa, uhum, então, queria saber se, sei lá, a gente não podia ir pra outro lugar hoje, pra eu te apresentar o rio. Hoje? Beleza! Te encontro lá. Até mais. Ei- mais uma coisa... eu acabei derramando cerveja no guardanapo ontem... não consegui ler o teu nome... ahn? como? ah, tá, entendi... com dois y? tá bom então, depois nos vemos. Até mais.
"Cara, tem certeza que ela vem?", perguntou seu amigo. "Claro, ela deve estar perdida... ela não sabe andar muito bem pela cidade, sei lá." "Como é o nome dela? Você perguntou?" disse o outro. "Perguntei sim... é bem diferente... Ah é ela ali! A alta, loira, gata demais né? Vou lá chamá-la" "A coisa tá russa" Seus amigos disseram um para o outro. "Essa aqui é a garota que eu falei que conheci ontem. Esse aqui é o Carlos. E esse aqui é o Danilo - ele é engraçadinho, não deixa ele te zoar muito." "Martin achou teu nome lindo" Danilo falou ao cumprimentá-la. "Ah... obrrigado" Ela falou, desviando o olhar de Martin, corando novamente. Um pouco depois mais 2 amigas dela chegaram, e enquanto os amigos se conheciam, Martin foi fumar, e ela foi com ele.
"Você não entender meu nome, né?" "Ele é meio complicado..." Ele disse, sem jeito. "Como você me chamar?" Ela perguntou, olhando com seus olhos azuis nos dele. "Russa... tu é a Russa.", "Você é o brrasileiro então" Ela respondeu rindo. "Não, brasileiro é sem graça... todos são brasileiros aqui." "Então algo diferrente em você... eu gosto da sua cor... na rússia todo ser branco, bem branco" "Quer me chamar de marrom?" "Marrom? Marrom é black em brasileiro?" "A gente fala português, e black é preto, mas é errado chamar de preto." Ela ficou chateada e bufou, sentou-se na calçada, calada. Ele se sentou ao seu lado, sorriu e disse "Pretinho... pretinho é carinhoso." "Eu gostar de você, prretinho." Ela disse, se aproximando dele. "Eu gosto de ti..." e se beijaram.
Passou-se a semana, e eles se viram todos os dias, no início foram ao Cristo Redentor, ao Pão de Açúcar, mas se cansaram, não queriam fazer nada, só ficar juntos, ela ia embora logo, e provavelmente não se veriam mais. Seus amigos ligavam para ele e ele dizia que não poderia sair, que estava com ela, e eles sempre respondiam "A coisa tá russa, ein.". Ela estava aprendendo a falar português, aprendeu alguns palavrões primeiro, e passou para conjugação, algumas expressões, saía com amigas brasileiras, quando Martin estava no trabalho.
Martin foi se despedir dela no Galeão, mas ficou preso no trânsito, quando chegou lá, o vôo dela já tinha partido, ele se enfureceu, gritou, chorou, não acreditava que a perdeu, para sempre, sem um último abraço, sem um último beijo. Ele ficava repetindo para si mesmo "A coisa tá russa, a coisa tá russa, a coisa tá russa.' Com a cara colada no vidro do aeroporto, vendo os aviões decolarem e pousarem. "Não, a coisa estar prreta." ele virou e a viu lá "sérrio, meus pais me matar quando descobrrir essa loucurra, a coisa tá prreta, Martin."
domingo, 7 de julho de 2013
Perdão.
João sempre achou que, quando fosse chegada a indesejada das horas e ele tivesse de se encontrar com aquele senhor lá que manda em tudo, ele teria de responder muita coisa, explicar-se por outras, apenas pedir desculpas por outras inexplicáveis, mas não foi bem assim que tudo se passou.
Foi há umas duas semanas, era quarta-feira, João tinha saído cedo pro trabalho, beijou a esposa que ainda estava na cama, a Joaninha que ainda dormia porque já entrara de férias e foi junto com o Fernando (o danado tinha ficado de recuperação em português) para o carro, deixou o Fernandinho na escola com um beijo na testa e um sorriso, seguiu dali para o escritório. O escritório o aporrinhava, bons-dias amargos de café, o mesmo barulho o tempo todo do toque dos teclados de todos os trabalhadores em seus teclados repetidos o dia todo o tempo todo, o Sr. Albuquerque a encher-lhe o saco com solicitações pendentes dos nossos colaboradores em Denver para amanhã e um dossiê de tantas páginas que, ei, eles querem que você o refaça. Maldito Sr. Albuquerque. Passou a manhã vendo o relógio tiquetaquear e empoladamente tentando escrever o dossiê dos nossos colaboradores até que a mais desejada das horas chegou, 12h.
Horário de almoço cheio de sorrisos mais verdadeiros e mais largos que de menino de catorze anos quando pensa que está amando, afinal era quarta feira, dia de feijoada. Ia com os amigos do escritório para o restaurante que ficava a duas quadras abaixo. Ia, quando ia atravessar a avenida o Otávio da contabilidade gritou pra ele alguma coisa sobre o jogo da seleção, quando ouviu, parou e virou pra dizer que aquela copa era nossa, um ônibus que João achou lindo, imenso e laranja (logo logo laranja e vermelho), maior que os sonhos, as vidas de sua família ou qualquer outra coisa passou por cima dele, os que estavam lá dizem que a cena foi feia.
Chegando lá em cima, um velhinho bem barbudo lhe sorriu. João o reconheceu na hora, sabia que era chegado o momento, pensou que precisaria justificar tanta coisa, traíra sua esposa com a Lurdes, quando mais jovem fizera tanta coisa errada, era chegada a hora e ele não fazia ideia de como se justificaria. Ia abrir a boca quando, tal como o ônibus, o velho interrompeu seus pensamentos e tomou a dianteira, dizendo a ele que tudo que queria era o seu perdão.
Perdão.
Sua família estranhara sua vinda, ele disse que precisava de um tempo para se distrair, esquecer os deveres eclesiásticos, pensar em outras coisas, arejar a cabeça. Logo voltaria, em alguns dias, uma semana.
Estava calado, não conversava muito com eles, estava cansado, não se unia às orações. Estava longe, não estava. Ficava apenas isolado em seu quarto, desolado, algo estava errado, mas não sabiam dizer o que era, algo errado aconteceu.
Ele, trancado em seu quarto, pensando em como errou, em como estava errado. Errou para ele mesmo, errou para o que pregava, errou para seus irmãos, errou para todos, principalmente para com ela. Salete... a maior vítima disso tudo, não merecia isso, não merecia nenhuma das injurias que lhe acometeram. Era linda, era graciosa, era simples e, acima de tudo, era uma vítima. E ele, mais um culpado. Pobre Salete, tudo que queria ele queria era seu perdão.
Os clérigos estavam preocupados com ela, alguns tinham pena, outros secretamente a julgavam. E ela ficava jogada pelos cantos, triste, deprimida, desesperançosa, culpada. Sentia agora que tudo que fazia estava errado, sentia-se um fardo para os frades que lhe acolheram, disse que ficaria alguns dias no convento e algumas semanas já passavam, vagarosas, dolorosas.
Sentia que tudo era sua culpa, só podia ser sua culpa o desejo de tantos homens por ela. Só podia ser sua culpa que eles quebrassem as barreiras do certo para possui-la, só podia ser sua culpa todos os assédios. E por isso queria perdoar Frei Fábio, ele não era o culpado, ela quem era. Nenhum dos homens era o errado, ela quem era. Mas não podia, não havia em seu ser a capacidade de esquecer todos os insultos, de absolver o desrespeito.
Desrespeito. Sabia, entretanto, que também errara, desrespeitou José tantas vezes, tantas e tantas vezes. E sabia que a culpa era dela, sabia que apesar do erro dos homens em cortejá-la, não deveria ter cedido, não deveria achar que José a perdoaria, não poderia colocar em jogo seu sentimento, deixar à sorte. José sim, José era a verdadeira vítima, sempre tão tenro, tão terno, tão bom... tão bonzinho, ela dizia. Mas não a perdoou, e ela sabe como ele estava certo. Não a perdoou, por mais que lhe doesse o coração, ele estava certo. Ele era a verdadeira vítima. Pobre José, tudo que ela queria era seu perdão.
O tempo passou, a culpa não, a dor não.
Não conseguia seguir em frente, não conseguia sair de lá. Por mais que sentisse que já era hora, não podia.
Bateram à porta.
A moça foi abri-la, a porta era quase tão pesada quanto a culpa que ela carregava nos ombros, quase tão grande quanto a dor que trazia no peito, quase tão dura quanto o golpe que levou. Girou a chave de ferro, fria como seu sorriso nesse último mês. Arrastou-a devagar. Abriu-a, os olhos baixos primeiro viram seu sapato, que ela conhecia bem, que ficavam à porta quando ele chegava depois de um dia de trabalho. As pernas compridas, que conduziu os dois à alegrias, ao futuro. O corpo rijo de levar porrada, de suportar toda injuria pelos dois. Os braços fortes, as mãos grandes, que nunca soltaram as dela. Mas o semblante, sempre sereno, estava sério, o cenho franzido. Ela ficou imóvel, ele aproximou o rosto do dela, os lábios grossos se moveram mecânicos, disseram-lhe algo importante ao ouvindo. A jovem não aguentou, desfez-se em lágrimas, afogou-se em prantos. O olhar duro dele se dobrou em dor, os lábios volumosos tremiam. José não aguentou, chorava como uma criança, chorava como quem ama e como amava.
O católico foi abri-la, a porta era quase tão pequena quanto estava sua fé, quase tão frágil quanto seu coração, quase tão fraca quanto ele próprio sentia. Girou a maçaneta, enferrujada como suas preces, as quais não repetira no último mês. Arrastou-a devagar. Abriu-a. Era ela, virou o rosto para não abocanhá-la novamente, mas a dor era tamanha, a culpa era tanta, que mal observaria sua carne bem formada. O erro lhe tomou por inteiro, o desejo deixou seu corpo, como se expele dejetos. Necessário, apesar de sujo, natural apesar de grotesco. Ele a olhou de novo, estava exatamente como lembrava, apesar de evitar olhá-la muito. Mas algo estava diferente, um sorriso lhe tomava a face, um sorriso puro, inocente. Estava feliz, era isso, e nunca a vira feliz, do contrário ele nunca a conheceria, sempre a confessar seus erros, sempre a pedir perdão às pessoas erradas. Ela se aproximou rapidamente, ele se afastou, com medo. Ela o puxou e disse-lhe algo no ouvido. O frade não aguentou, seus olhos marrons como a lama marejaram, seu olhar sujo, purificado com as lágrimas que caíam. Ela sorriu, o dedo comprido secou uma lágrima, os lábios finos lhe beijaram a fronte.
A casa era simples e pequenina. A casa era bem arrumada e aconchegante. A casa era um lar, o lar dos dois. Nos fundos, estavam os três, a derramar lágrimas, a sorrir, a se perdoar. Fábio de batina, que Salete afanara do convento antes de ir embora, as canelas de fora por um erro de tamanho. José com um terno um número maior, o mesmo que usara há alguns anos, o trabalho dobrado fez com que emagrecesse, apesar de ainda ser maceta. Salete tinha o cabelo trançado até o meio das costas, um vestido branco, sem adereço e adornos, simples. Simples como o sorriso dos três.
Fábio, por fim, disse:
"Pode beijar a noiva."
domingo, 9 de junho de 2013
Penitência.
Personagens da peça: O Juiz, os réus, os advogados, um júri.
A peça inicia-se em um grande tribunal, diversos réus aguardam enquanto conversam a entrada do senhor Juiz, após a sua entrada todos se sentam e é dado início ao julgamento.
Juiz: Ordem, ordem no tribunal. Que venha o primeiro a ser julgado.
Primeiro réu: (Para o seu advogado) Bem, é melhor eu ir logo porque ordem é comigo mesmo. (Para todos.) Bom, não creio ter cometido crime algum, mas se o senhor quiser julgar-me, sou todo seu.
Juiz: Certo, vejamos bem, tu não fizeste muito mal, foste sempre pelo bem dos pobres e sempre promoveste a igualdade, apesar de um erro ou outro acobertado por teus chefes. Por que ele está aqui então?
Advogado do primeiro réu: Bem, senhor, o meu cliente não fez nada de errado. Está aqui apenas por ter comido algo que disseram ser proibido por uma lei diferente da nossa, o que não faz sentido. (Entrega a constituição estrangeira para o Juiz) Se o senhor analisar bem, verá que, de fato, é proibido o consumo dessa carne para esses estrangeiros, mas o meu cliente vive aqui, e portanto deve seguir a nossa lei.
Juiz: Culpado! Não se deve ir contra a lei, não importa qual seja.
Juiz: Que venha o segundo réu.
Segundo réu: Certo, ele está usando a minha constituição, então vai ser fácil me livrar.
Juiz: Vejo que o senhor jamais comeu da carne que não devia comer, nem mesmo fez mal indiscriminadamente, por que está aqui então?
Advogado do segundo réu: Bem, senhor, o meu cliente não fez nada de errado. O motivo que o trouxe aqui foi o fato de que buscou sempre o poder e a riqueza, mas sempre com trabalho árduo e sem jamais roubar de ninguém algo sobre o que não tinha direito. Mas isto não está prescrito por nossa lei, apenas pela lei de nosso vizinho, ele não deve ser julgado por leis alheias.
Juiz: Culpado! Não se deve ir contra a lei, não importa qual seja.
Juiz: Que venha o terceiro réu.
Terceiro réu: (Aparte) Ó, céus, vejo que não será fácil sair daqui inocente, esse Juiz não faz sentido algum.
Juiz: O senhor também é um bom cidadão, jamais comeu da carne que não devia comer, nem mesmo fez mal aos seus semelhantes e muito menos avarento foi. O que o traz aqui então, bom homem?
Advogado do terceiro réu: Bem, senhor, o meu cliente não fez nada de errado. O crime que dizem ter cometido, veja só, é o de amar demais, meu bom Juiz. Sim, exatamente isso que o senhor ouviu, meu cliente é acusado de amar demais. Isso porque no país de um desses outros não é permitido que se ame demais, e como o meu cliente desposou mais de uma moça, o que inclusive é algo bom, pois primeiramente não cometerá o adultério, e em segundo lugar ele cria uma família ainda maior e ajuda ainda mais mulheres ao mantê-las sob seu teto. Ele não é culpado, ele não deve ser julgado pelas leis desses outros homens.
Juiz: Culpado! Não se deve ir contra a lei, não importa qual seja.
Juiz: Bem, e você aí, garoto? Que foi que você fez?
Último réu: Acho que nada. Eu bebo, eu fumo um pouquinho também, mas nada de mais, sabe?
Juiz: Muito bem, todos temos nossos defeitos, não é? Mas e com o dinheiro, como anda?
Último réu: Ah, eu tenho o meu emprego mas eles não pagam muito, mas mesmo assim eu não fico muito endividado, aprendi bem a me organizar nisso com a minha mãe.
Juiz: Bom, e com as mulheres, como estamos?
Último réu: Eu namoro, o nome dela é Madalena, ela é maravilhosa e a gente se dá muito bem e eu nunca a traí, aliás nunca traí nenhuma garota com quem eu estivesse, (Sussurra) Embora eu conhecesse a Madalena desde a época em que eu tava com a minha última namorada e meio que tava de olho nela desde então, mas só de olho mesmo.
Juiz: Bem, quem é que nunca olhou pra alguma outra, não é? Mas e o seu advogado?
Último réu: Não tenho.
Juiz: Bom, mas por que está aqui, meu deus?
Último réu: Não faço a mínima ideia, faço coisas erradas aqui e acolá, mas nunca por maldade, não mesmo. A grande verdade é que eu achava que isso aqui era uma mentira, que o senhor nem mesmo existia e que eu não ia precisar ser julgado.
Juiz: Inocente.
Penitência.
Ele estava sentado no salão principal do convento, pensando, refletindo, orando. Os olhos pesavam, mas não conseguia fechá-los, a imagem dele lhe vinha à mente, e ele despertava, estava fraco, cansado, mas não conseguiria dormir em paz.
Era tarde da noite, perdeu a noção de quanto tempo ficara lá, analisando sua vida, seu caminho, seus passos, não podia acreditar que foi tudo em vão.
Alguém batia à porta, batidas fortes, sofridas.
Foi atender, se perguntava quem poderia ser, se perguntava tanta coisa. A grande porta de madeira se abriu, e lá estava ela, a causa de todos seus problemas, todas suas angústias. Seus cabelos negros totalmente desgrenhados, seus olhos cheios d'água. Ela pedia por ajuda, um lugar para passar a noite, e ele, um servo de Deus, não poderia deixá-la abandonada, não importando seus pecados, tudo que ela fizera.
Pediu que ela entrasse, que lhe explicasse o que aconteceu, por que estava assim.
Ela se atropelava nas palavras, chorava, se afogava em prantos, ele a abraçava, sentia aquela pele macia, sentia o perfume que vinha dela. Sabia que não devia, mas se sentia bem de tê-la aos seus braços, de ser a única saída que ela encontrou.
Ela se atropelava nas palavras, dizia que queria mudar, que não enganaria mais seu esposo, seu amor. Não enganaria mais a si mesma, não era isso que ela queria, queria ser feliz, queria conseguir colocar a cabeça no travesseiro e dormir em paz. Não queria se arrepender todas as noites das traições, não queria rezar o dia todo por perdão.
Ela se atropelava nas palavras, lhe contou como falou ao marido de toda sua infidelidade, mas sabia que ele perdoaria, era um homem de bom coração, queria ser feliz com ela, sabia que a sinceridade seria maior que qualquer pecado, a sinceridade seria maior que qualquer erro. Erro. Errou. Errada. Ele mandou pegar suas coisas e sumir de sua frente, ir embora naquela mesma hora. Ela implorou por perdão, chorou, se ajoelhou, implorou por perdão, se mostrou arrependida, chorou e implorou por perdão. Mas ele estava decidido, traição era demais. E ela foi, sem outra saída, teve de sair. Não sabia para onde ir, os outros homens que entraram em sua vida não lhe acolheriam. Então pensou nele, no frei, que tanto lhe queria bem. E até lá ela foi, chorando, implorando por perdão.
Passou a noite lá, no quarto dele. Ele dormiu no salão principal, quase não dormiu, pensando nela, ela, em sua cama. Sua pele macia enrolada em seus lençóis. Não dormiu, pensando nela, ardendo.
Todos no convento lhe acolheram, lhe deram um quarto de hóspede e disseram que poderia ficar quanto tempo precisasse, e ela precisava disso, tempo, tempo, tempo.
Uma semana passou, ela continuava cansada, triste, chorosa. Mas estava feliz por ter sido tão recebida, pelo carinho e pelo afeto, pelo amor que todos tinham para com ela, principalmente do frei que tanto que lhe queria bem, que abriu as portas para ela.
E no sétimo dia, quando todos ceariam juntos, ele foi procurá-la, bateu à porta mas ela não atendia, tentou abrir, abriu. Suas roupas estavam jogadas na cama, ouvia o chuveiro, se aproximou da porta do banheiro, ela cantarolava, estava melhor. Ele ia esperar fora do quarto, mas pensou consigo mesmo que essa seria a chance que ele sempre quis, de vê-la, de saciar seu desejo, aproximou-se da porta, agachou-se.
Via seu corpo desnudo pela fechadura da porta, as curvas lascivas, como a desejava. Como a queria. Entendia o pecado, entendia como podiam fazer o errado, ele estava pecando, ele estava errado. Errado por pensar nela todas as noites. Por trair a igreja, por se trair. Ela dançava por trás da névoa da água quente, como se dançasse por trás de véus, como se dançasse para ele. E ele enlouquecia. Seu corpo fervia, abriu sua batina, e como estava errado, como pecava. Não se importava, toda sua fé estava quebrada, o ceticismo era cada vez mais duro, ele não sabia o que fazer, balançava de um lado para outro, tinha medo de pecar, mas pecava e como era bom, ele balançava de um lado para o outro, e sua duvida derreteu em suas mãos, os olhos fechados, agradecendo a deus. Era tão bom, o pecado, era tão bom, regojizou. Ela notou algo estranho, ele não.
Se cobriu e abriu a porta. Ele estava lá, pecaminoso, sujo. Ela estava lá, traída, violada. Saiu correndo, pedindo ajuda, o acusando. Ele errou, assumiu o erro, a culpa, o pecado.
Foi expulso. Recolheu suas coisas, foi embora.
Ela foi expulsa, não tinha mais lar, não tinha paz. Estava pagando por seu erro.
Ele foi expulso, foi para casa, finalmente em paz. Estava pagando por seu erro.
domingo, 12 de maio de 2013
Oração.
O maior corte da minha vida aconteceu por volta de uns oito ou dez anos de idade, mamãe antes disso sorria e dizia "dorme com os anjos". Eu adorava os anjinhos, eu deitava na cama, esperava mamãe cantar uma canção de ninar daquelas bem bonitinha ou me contar uma história – eu adorava aquela da princesa que só descobriam que era princesa quando ela sentia que tinha dormido em cima de uma ervilha mesmo com um montão de colchões, eu sempre ficava tontinho tontinho com a ideia de que ela era assim tão delicada – aí depois de tudo isso mamãe me cobria, dava um beijo quente na testa e dizia "dorme com os anjos". Depois disso era tudo festa, os anjinhos iam aparecer e eu me metia debaixo dos meus cobertores e sonhava com eles, meus anjinhos assim tão lindos. Um grandinho, devia ter a idade do meu irmão mais velho, esse anjo sempre tinha uma cara de sério, mas ele brincava com a gente mesmo assim, acho que mais pra cuidar de nós. O do meio era um pouco mais velho que eu, mas que anjo mais safado, viu? Vivia pulando de cá pra lá, batendo as asinhas, tirava a auréola e girava no dedo, jogava daqui pra ali, nunca entendi como ele fazia aquilo, até levantava a bata e mostrava o pipizinho por aí. Já a menorzinha era uma fofa, era do meu tamanho e não brincava muito, não, era mais quietinha. Os olhinhos azuis, clarinhos clarinhos, os lindos cabelos loiros, caíam pelos ombros e brilhavam tanto, mesmo que me visitassem só de noite, e o sorriso tímido que ela sempre me dava quando vinham me visitar, a bata parecia um vestidinho de noiva, lembrava porque tinha visto um igual nas fotos do casamento da mamãe e do papai. Aí eu fazia de conta que ela era minha namorada ou coisa assim e ela gostava tanto de mim.
Só que um dia mamãe foi e veio com esse tal de Deus. Era uma noite como todas as outras, já havia me deitado e ela subiu, abriu a porta do quarto, quando começara a me empolgar e esperar por minha noiva a minha mãe disse da porta "dorme com Deus". Fiquei abismado, a minha esposa não vinha aquela noite? E quem era aquele Deus? Lembrava de ter ouvido falar dele algumas vezes, quando algo de ruim acontecia os adultos gritavam "Meu Deus", "Deus do céu" ou coisa similar. Sem contar que ele parecia um completo censor, pois toda vez que eu fazia algo de errado eles diziam que Deus estava vendo. Algumas semanas ela nem mesmo ia ao meu quarto, algumas vezes apenas dizia "dorme com Deus" enquanto eu me encaminhava para o meu quarto. A culpa era toda daquele Deus.
A esse ponto já não sabia mais o que fazer, procurei ajuda dos amigos mais próximos e o Dênis – um menino com quem estudava que era muito barrigudinho e muito inteligente – disse-me que a mãe dele lhe havia que Deus era muito forte e bom e que ele podia realizar nossos desejos se fizéssemos a ele uma oração, até parece que era bom, fora ele mesmo que me tirara a minha querida. Eu já havia ouvido falar nisso de oração, mamãe me ensinara uma oraçãozinha para Nossa Senhora uma vez e também tinha um tal de Pai Nosso, mas nem dava bola para isso, só pensava na minha anjinha, morria de saudades dela. Segui então os conselhos do tal Dênis, chegada a noite ajoelhei-me em frente à cama, apoiei os cotovelos no colchão e lembrei da minha princesa, ela sentiria todas as madeiras lá embaixo, era tão pura e angelical. Fechei os olhinhos e falei com Deus. O mais engraçado é que, segundo o Dênis, você não precisa falar de verdade pra falar com Deus, ele ouve os nossos pensamentos e tá dentro da gente mesmo, achei estranho eu precisar fazer tudo isso então, se ele ouvia os nossos pensamentos ele não devia saber o que eu queria? Orei mesmo assim, e continuei por um bom tempo, mas nunca mais vi o meu anjo de volta.
Foi assim até os quinze anos, quando a conheci. Era um dia comum na escola, eu passava por todos sem reparar em ninguém, mas por acaso esbarrei nela e ela fez uma piadinha sobre mim. Sim, eram os mesmos cabelos, sim, eram os mesmos olhos. Não estava com o vestidinho, mas isso porque usava o uniforme da escola. Agradeci Deus, agradeci tanto quando cheguei em casa. Demorou mas atendeu meu pedido, lá estava a minha namorada, a minha noiva, a minha esposa! Sim, lá estava ela em carne e osso. Conhecemo-nos melhor, passamos um certo tempo juntos mas logo veio outro corte, sem Deus nem nada, só alguém mais bonito e mais engraçado.
Ajoelho-me em frente à cama, apoio os cotovelos e fecho os olhos.
Oração.
"Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos Vossos fiéis, e acendei neles o fogo do Vosso amor"
Ele parava por um segundo e repetia as palavras
"O fogo... do amor."
Continuava a Invocação e só então abria os olhos, lentamente, as palavras ainda queimavam no seu peito. Sentava-se na cama, zonzo, como se não soubesse onde estava, apesar de ter acordado a vida toda nessa cama, nesse quarto. "Amém"
Levanta-se, os pés pesavam, sentia-se preso a grilhões, sentia-se preso. Andava em círculos, pensava; planejava, mas sabia que não podia fazer nada. No meio do quarto, parava, afastava as mãos do corpo, fechava os olhos e dizia, em silêncio, "Divino Jesus, eu Vos ofereço este Terço que vou rezar contemplando os mistérios de nossa Redenção." Caminhava ao lavatório, enchia suas mãos de água fria que escorria. A torneira chiava. Lavava o rosto, as mãos, purificava-se com a água que saia da torneira. A torneira chiava. Fechava-a. Olhava para o espelho, para seus olhos. Abria a torneira novamente. De novo ela chiava. Molhava outra vez o rosto, a fronte. A torneira que chiava foi fechada. Se olhou. Os olhos pareciam sujos, olhos marrons, fortes. Sujos.
Sentado na cama, segurava, firme, a cruz. Fazia o sinal da cruz, seu braço esquerdo latejava, uma dor que já não mais existia, mas que lhe marcou. Com dor aprendeu a fazer o sinal da cruz com a mão direita, a escrever com a mão direita.
"Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra."
Saia de seu quarto, a mão sempre enrolada em seu terço. Apenas meneava a cabeça, confirmava, declinava, nesses dias, não se importava muito para o que acontecia ao seu redor. Sabia que algo pior estava por vir mais tarde, e seguia orando.
"Pai Nosso que estais nos Céus"
Descia para o salão principal e dejejuava com seus irmãos. "Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco"
Pegava um pedaço de pão e dividia com quem sentava ao seu lado.
"Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco"
Levanta-se a agradecia pela refeição."Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco"
Seus dedos finos, frágeis, chegavam à quarta das grandes contas, passou o dia revezando seus afazeres, suas orações; seus pensamentos, seus lamentos; suas vontades, seus desejos.
Estava sentado no confessionário, aguardava a próxima confissão. O sino batia, uma, duas, oito vezes. Seu coração, oitocentas.
"Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, assim como era no princípio, agora e sempre (e pelos séculos dos séculos), Amém"
A porta de madeira rangeu, ouvia os passos, calmos, frívolos. Ela abriu o estrado para vê-lo.
"Ave Maria Puríssima"
"Sem pecado concebida. Abençoe-me, Padre Fábio, pois pequei. Há sete dias fiz minha última confissão."
Ele fechava os olhos, pensava em tudo que aprendeu, orava para si mesmo "Pai Nosso que estais nos Céus"
"Meus pecados... Meu pecado é o seguinte:"
E ela lhe dizia com detalhes, sua voz aveludada, macia. Dizia-lhe de seus pecados, seus adultérios, dizia como caía na tentação. Com detalhes, ele imaginava, ele traía, era traído por seu corpo. Ela lhe dizia, como era tocada, dizia, como se sentia, como era bom.
Ele, num segundo de tentação, a olhava, olhava por inteiro. Ela, ajoelhada, os olhos fechados, as mãos juntas. Como era bela, como era pura. As lágrimas escorriam de seu rosto. As lágrimas caíam, ele caía, virava-se, não podia olhá-la, não podia, não podia nada.
Por fim, ele dizia.
"Já sabes o que te direi, reze o terço o dia inteiro, pense se é isso que queres, o que amas de verdade. Reflita, minha filha, reflita."
Ela concordava, os olhos marejados, os lábios a fraquejar. Segurava o choro, era forte, era fraca. Dizia"Senhor Jesus, Cordeiro de Deusque tiras o pecado do mundo, reconcilia-me com o Pai pela graça do Espírito Santo;purifica-me de todos meus pecadose faz de mim um homem novo. Amém."
"O senhor perdoou teus pecados, Ide em paz." Ele respondia. Ela agradecia e ia, em paz.
Ele ficava lá, sentado, não ouvia mais nenhuma confissão, não podia, não conseguia.
Esperava, esperava quanto tempo for.
"Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós.
Rogai por nós, santa Mãe de Deus.
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo."
Levantava-se, e ia, sem paz.
Ele parava por um segundo e repetia as palavras
"O fogo... do amor."
Continuava a Invocação e só então abria os olhos, lentamente, as palavras ainda queimavam no seu peito. Sentava-se na cama, zonzo, como se não soubesse onde estava, apesar de ter acordado a vida toda nessa cama, nesse quarto. "Amém"
Levanta-se, os pés pesavam, sentia-se preso a grilhões, sentia-se preso. Andava em círculos, pensava; planejava, mas sabia que não podia fazer nada. No meio do quarto, parava, afastava as mãos do corpo, fechava os olhos e dizia, em silêncio, "Divino Jesus, eu Vos ofereço este Terço que vou rezar contemplando os mistérios de nossa Redenção." Caminhava ao lavatório, enchia suas mãos de água fria que escorria. A torneira chiava. Lavava o rosto, as mãos, purificava-se com a água que saia da torneira. A torneira chiava. Fechava-a. Olhava para o espelho, para seus olhos. Abria a torneira novamente. De novo ela chiava. Molhava outra vez o rosto, a fronte. A torneira que chiava foi fechada. Se olhou. Os olhos pareciam sujos, olhos marrons, fortes. Sujos.
Sentado na cama, segurava, firme, a cruz. Fazia o sinal da cruz, seu braço esquerdo latejava, uma dor que já não mais existia, mas que lhe marcou. Com dor aprendeu a fazer o sinal da cruz com a mão direita, a escrever com a mão direita.
"Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra."
Saia de seu quarto, a mão sempre enrolada em seu terço. Apenas meneava a cabeça, confirmava, declinava, nesses dias, não se importava muito para o que acontecia ao seu redor. Sabia que algo pior estava por vir mais tarde, e seguia orando.
"Pai Nosso que estais nos Céus"
Descia para o salão principal e dejejuava com seus irmãos. "Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco"
Pegava um pedaço de pão e dividia com quem sentava ao seu lado.
"Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco"
Levanta-se a agradecia pela refeição."Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco"
Seus dedos finos, frágeis, chegavam à quarta das grandes contas, passou o dia revezando seus afazeres, suas orações; seus pensamentos, seus lamentos; suas vontades, seus desejos.
Estava sentado no confessionário, aguardava a próxima confissão. O sino batia, uma, duas, oito vezes. Seu coração, oitocentas.
"Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, assim como era no princípio, agora e sempre (e pelos séculos dos séculos), Amém"
A porta de madeira rangeu, ouvia os passos, calmos, frívolos. Ela abriu o estrado para vê-lo.
"Ave Maria Puríssima"
"Sem pecado concebida. Abençoe-me, Padre Fábio, pois pequei. Há sete dias fiz minha última confissão."
Ele fechava os olhos, pensava em tudo que aprendeu, orava para si mesmo "Pai Nosso que estais nos Céus"
"Meus pecados... Meu pecado é o seguinte:"
E ela lhe dizia com detalhes, sua voz aveludada, macia. Dizia-lhe de seus pecados, seus adultérios, dizia como caía na tentação. Com detalhes, ele imaginava, ele traía, era traído por seu corpo. Ela lhe dizia, como era tocada, dizia, como se sentia, como era bom.
Ele, num segundo de tentação, a olhava, olhava por inteiro. Ela, ajoelhada, os olhos fechados, as mãos juntas. Como era bela, como era pura. As lágrimas escorriam de seu rosto. As lágrimas caíam, ele caía, virava-se, não podia olhá-la, não podia, não podia nada.
Por fim, ele dizia.
"Já sabes o que te direi, reze o terço o dia inteiro, pense se é isso que queres, o que amas de verdade. Reflita, minha filha, reflita."
Ela concordava, os olhos marejados, os lábios a fraquejar. Segurava o choro, era forte, era fraca. Dizia"Senhor Jesus, Cordeiro de Deusque tiras o pecado do mundo, reconcilia-me com o Pai pela graça do Espírito Santo;purifica-me de todos meus pecadose faz de mim um homem novo. Amém."
"O senhor perdoou teus pecados, Ide em paz." Ele respondia. Ela agradecia e ia, em paz.
Ele ficava lá, sentado, não ouvia mais nenhuma confissão, não podia, não conseguia.
Esperava, esperava quanto tempo for.
"Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós.
Rogai por nós, santa Mãe de Deus.
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo."
Levantava-se, e ia, sem paz.
sábado, 20 de abril de 2013
A Chuva.
Vivia com a chuva como um adolescente que se envergonha dos pais. Cansara-se daquele lugar maldito já havia um bom tempo, não havia um dia em que não caísse pelo menos uma só gota do céu. E mesmo enquanto não chovia a vida não ficava muito melhor, as nuvens carregadas faziam questão de ficar por ali mesmo e não davam chance alguma para o Sol, era impossível manter-se bem humorado naquele lugar.
Se fazia planos, a chuva os desmanchava, se pensava em dias melhores, o céu fechava. Lugar maldito, lugar que não sabia ser feliz, todos só trabalhavam e passavam por aqui e ali tão fechados em seus sobretudos, protegendo-se com seus guarda-chuvas e guarda-relações. As pessoas de lá já sabiam muito bem como lidar, mas não ela, ela era feliz. Saco de lugar que só tem gente chata, gente que só quer trabalhar e ficar séria. Ela era melhor do que isso, evidentemente, tinha amigos de tantos lugares, tinha gostos tão fenomenais, ela era, realmente, fenomenal e espetacular e fora do comum e extraordinária. Gostava de tanta música boa, via filmes tão profundos, lia livros tão tocantes. Sim, os livros, tinha um excelente gosto para livros, já havia lido todos os clássicos, conhecia tantos autores contemporâneos que se destacavam também. Passava, por esse motivo, grande parte de sua vida em bibliotecas, o que era bom pois assim fugia da chuva e do mundo chuvoso, mergulhando no mundo do fantástico, fabuloso e inacreditável. Foi aí que aconteceu o momento grande da sua pequena vida na gigante cidade, encontrando um livro de um poeta desconhecido, leu.
Chove lá fora.
Chove e a chuva sou eu.
Chovo tudo de errado que há em mim,
Chovo tudo de certo que há em mim.
Chovendo eu sigo toda a vida.
Chovo mas não importo.
Chovo não como outros chovem.
Chovem tempestuosos.
Chovem tocantes.
Chovem comoventes.
Chovo só eu.
Foi então que, como se um relâmpago lhe atingisse, entendeu a chuva. Entendeu a chuva e chorou.
A Chuva.
Chovia no dia que nos conhecemos, a chuva era fraca, como a esperança que eu tinha de darmos certo, uma simples garoa. Lembro-me muito pouco dela, lembro-me muito pouco daquela noite, deixei toda minha memória reservada para teu toque. Mas sei que chovia.
Sempre está chovendo. Por aqui, sempre está chovendo.
E lembro de quando fugimos da chuva, como quem foge do inesperado, com medo de se molhar, com medo de correr o risco. Admito que a chuva era forte, muito forte, como o que eu já sentia por ti. E, já protegidos, meu coração batia forte, e um sentimento inundava meu coração, como a chuva que inunda cidades, violenta e abruptamente.
Chovia, chovia aqui dentro. Ininterruptamente. Até que teu sorriso a interrompeu .
Do teu sorriso abriu um dia belo, um dia quente de verão. Tu abriu o sorriso e o céu se abriu, para não ficar pra trás.
Quando fui atrás de ti, o céu aberto, o sorriso escancarado. O Sol no céu, tu em mim. Choveu, quem diria, choveu. E eu não fui precavido, fui apenas com a cara, a coragem e o amor. E a chuva.
Sem guarda chuva, sem medo. Banhei-me, purifiquei-me. As gotas d'água encontravam minha face sorridente, batiam, se espalhavam. Eu, ensopado, finalmente entendi que não adiantava correr, que me proteger não me protegia de nada.
Tentar fugir é inútil e os respingos serão amargos.
Abri o sorriso, abri os braços, lhe dei um abraço e ganhei um beijo.
E finalmente entendi a magia do beijo na chuva.
Quem está na chuva, é para amar.
Sempre está chovendo. Por aqui, sempre está chovendo.
E lembro de quando fugimos da chuva, como quem foge do inesperado, com medo de se molhar, com medo de correr o risco. Admito que a chuva era forte, muito forte, como o que eu já sentia por ti. E, já protegidos, meu coração batia forte, e um sentimento inundava meu coração, como a chuva que inunda cidades, violenta e abruptamente.
Chovia, chovia aqui dentro. Ininterruptamente. Até que teu sorriso a interrompeu .
Do teu sorriso abriu um dia belo, um dia quente de verão. Tu abriu o sorriso e o céu se abriu, para não ficar pra trás.
Quando fui atrás de ti, o céu aberto, o sorriso escancarado. O Sol no céu, tu em mim. Choveu, quem diria, choveu. E eu não fui precavido, fui apenas com a cara, a coragem e o amor. E a chuva.
Sem guarda chuva, sem medo. Banhei-me, purifiquei-me. As gotas d'água encontravam minha face sorridente, batiam, se espalhavam. Eu, ensopado, finalmente entendi que não adiantava correr, que me proteger não me protegia de nada.
Tentar fugir é inútil e os respingos serão amargos.
Abri o sorriso, abri os braços, lhe dei um abraço e ganhei um beijo.
E finalmente entendi a magia do beijo na chuva.
Quem está na chuva, é para amar.
sábado, 6 de abril de 2013
Panapaná.
Estava deitado no colo dela quando a tarde caía. Ele adorava desperdiçar dias assim, com ela, sem fazer nada, vivendo de amor, vinho, boa música e bons livros. Estava deitado no sofá em frente à varanda com a cabeça apoiada no colo dela, a luz clareava metade do quarto e a poeira brilhava flutuando lentamente, aquela simples beleza lhe fascinava. Ela acariciava seus cabelos de uma maneira que ele adorava, enrolando ainda mais aqueles encaracolados e macios fios pretos, quando ele resolveu quebrar o silêncio.
— Acho isso tão lindo, sabe? Essa poeirinha brilhando assim quando a tardinha cai, parecem até umas fadinhas ou coisa do tipo.
— Panapaná. — as conversas deles eram sempre assim, ele falando muito e tentando não parecer idiota, ela sempre monossilábica o destruindo com frases diretas.
— Um panapaná? Como assim panapaná? — olhou para ela completamente confuso.
— Coletivo de borboletas.
— Ah.
Só assim ele falava pouco, quando não tinha o que falar. Deitou-se de volta e pensou um pouco no que ela havia dito. Sim, aquilo realmente parecia um monte de pequeninas borboletas, era tão bonito. Puxou a ponta do vestido dela como uma criança tímida chama a mãe, olhou naqueles olhos acastanhados e disse:
— 'Cê me dá um panapaná no estômago.
Ela apenas fechou os olhos e sorriu-lhe sem mostrar os dentes. Ele a amava.
Panapaná.
Borboletas. Sentia algo parecido com borboletas em seu estômago. Voavam para todos os lados, as pequenas asas coloridas batendo. Detrás de seu umbigo sentia cócegas, algo engraçado que lhe gelava por inteiro. Algo como: borboletas.
Mas não era possível, sabia que não era, como poderia haver borboletas em seu estômago? Elas não teriam como nascer, tampouco viver, sobreviver. Devia ser reacção de algo que comera, devia ser uma alergia, alguma doença, tudo que não borboletas.
Deixou estar, mais cedo ou mais tarde passariam.
Não passaram, por vezes diminuíam, por vezes aumentavam, mas estavam lá presentes, assim que acordava e antes de dormir, as borboletas voavam o dia inteiro, incansáveis, batiam asas.
Perguntaram-lhe se não era amor, muitos diziam que o amor causava isso nas pessoas, uma sensação como a de borboletas no estômago, apesar de ninguém jamais ter sentido borboletas no estômago. Ele negou, negou veementemente, não acreditava em amor e coisas do gênero, era racional demais para isso. Eram borboletas, só podiam ser.
Resolveu procurar ajuda. No médico, disse que não se sentia bem, que algo estava errado dentro dele, tirou uma radiografia e, na hora do resultado, nada. Não encontraram nada.
Sabia que não devia confiar nos outros, ele devia resolver sozinho.
Enfiou o comprido dedo indicador fundo na garganta, não conseguiu. Respirou fundo, esticou dois dedos e os enfiou novamente, segurou-se, abriu mais a boca e regurgitou no vaso. Nada. Nem uma mísera asa, somente a refeição de mais cedo. Com a boca ainda suja de vômito, soltou um palavrão. "Merda."
Conviveu ainda algum tempo com as borboletas, contou a uma amiga o que lhe afligia. Ela, compreensiva, disse que as coisas melhorariam e lhe abraçou. O abraço fez as borboletas enlouquecerem, revoavam agitadas por sua flora intestinal. Finalmente entendeu: a alergia era culpa dela. Afastou-se.
A principio, surtiu efeito, as borboletas se acalmaram. Voavam menos. Logo sumiriam de vez, afinal era só alergia, alergia à sua amiga. Uma pena, gostava dela.
Mas com o passar do tempo elas ficaram selvagens, ferais, revoltadas. Como naquele abraço, voavam, batiam-se, sentia um farfalhar de asas. Ao pensar em sua amiga, qualquer coisa lhe a lembrasse. Voavam, cada vez mais.
Cansou-se, não aguentava mais, já suportara demais essas borboletas, essa alergia, esse seja lá o que fosse.
A ponta da faca era gelada, sua ponta era muito pontiaguda, encostou em sua pele e tremeu de medo. Respirou fundo, pensou em sua amiga, as borboletas levantaram voo. Tinha de dar um basta. Pressionou a ponta da lâmina, um pouco acima do intestino. Num só movimento, rasgou-se, abriu um corte profundo, mas não sentiu nada. Tirou a faca do buraco que lhe fizera, nem uma gota de sangue. Achou estranho. As borboletas finalmente pararam. Perguntou-se se morrera, se a dor fora tão intensa que estava torpe.
Sentia algo escorrendo dentro dele, querendo sair. Antes que pudesse reagir um bando de borboletas saiu dentro dele, de todas as cores e tamanhos, luzidias, alvas. Voavam, voavam para o alto. Belas, livres.
"Eram mesmo borboletas." Ele pensou, rindo para si mesmo, na boca, um sorriso torto, confuso, ensanguentado.
Ensanguentado.
Lambeu seu lábio e percebeu o liquido quente que escorria, olhou para o corte que fizera. Jorrava sangue. Ficou pálido, de medo e de falta de sangue.
Foi tentar fazer qualquer coisa para interromper o sangramento, mas assim que se movimentou, suas tripas escorregaram para fora, caíram, gélidas, em seus pés.
E lá mesmo morreu.
Com as tripas no chão e as borboletas no céu.
Mas não era possível, sabia que não era, como poderia haver borboletas em seu estômago? Elas não teriam como nascer, tampouco viver, sobreviver. Devia ser reacção de algo que comera, devia ser uma alergia, alguma doença, tudo que não borboletas.
Deixou estar, mais cedo ou mais tarde passariam.
Não passaram, por vezes diminuíam, por vezes aumentavam, mas estavam lá presentes, assim que acordava e antes de dormir, as borboletas voavam o dia inteiro, incansáveis, batiam asas.
Perguntaram-lhe se não era amor, muitos diziam que o amor causava isso nas pessoas, uma sensação como a de borboletas no estômago, apesar de ninguém jamais ter sentido borboletas no estômago. Ele negou, negou veementemente, não acreditava em amor e coisas do gênero, era racional demais para isso. Eram borboletas, só podiam ser.
Resolveu procurar ajuda. No médico, disse que não se sentia bem, que algo estava errado dentro dele, tirou uma radiografia e, na hora do resultado, nada. Não encontraram nada.
Sabia que não devia confiar nos outros, ele devia resolver sozinho.
Enfiou o comprido dedo indicador fundo na garganta, não conseguiu. Respirou fundo, esticou dois dedos e os enfiou novamente, segurou-se, abriu mais a boca e regurgitou no vaso. Nada. Nem uma mísera asa, somente a refeição de mais cedo. Com a boca ainda suja de vômito, soltou um palavrão. "Merda."
Conviveu ainda algum tempo com as borboletas, contou a uma amiga o que lhe afligia. Ela, compreensiva, disse que as coisas melhorariam e lhe abraçou. O abraço fez as borboletas enlouquecerem, revoavam agitadas por sua flora intestinal. Finalmente entendeu: a alergia era culpa dela. Afastou-se.
A principio, surtiu efeito, as borboletas se acalmaram. Voavam menos. Logo sumiriam de vez, afinal era só alergia, alergia à sua amiga. Uma pena, gostava dela.
Mas com o passar do tempo elas ficaram selvagens, ferais, revoltadas. Como naquele abraço, voavam, batiam-se, sentia um farfalhar de asas. Ao pensar em sua amiga, qualquer coisa lhe a lembrasse. Voavam, cada vez mais.
Cansou-se, não aguentava mais, já suportara demais essas borboletas, essa alergia, esse seja lá o que fosse.
A ponta da faca era gelada, sua ponta era muito pontiaguda, encostou em sua pele e tremeu de medo. Respirou fundo, pensou em sua amiga, as borboletas levantaram voo. Tinha de dar um basta. Pressionou a ponta da lâmina, um pouco acima do intestino. Num só movimento, rasgou-se, abriu um corte profundo, mas não sentiu nada. Tirou a faca do buraco que lhe fizera, nem uma gota de sangue. Achou estranho. As borboletas finalmente pararam. Perguntou-se se morrera, se a dor fora tão intensa que estava torpe.
Sentia algo escorrendo dentro dele, querendo sair. Antes que pudesse reagir um bando de borboletas saiu dentro dele, de todas as cores e tamanhos, luzidias, alvas. Voavam, voavam para o alto. Belas, livres.
"Eram mesmo borboletas." Ele pensou, rindo para si mesmo, na boca, um sorriso torto, confuso, ensanguentado.
Ensanguentado.
Lambeu seu lábio e percebeu o liquido quente que escorria, olhou para o corte que fizera. Jorrava sangue. Ficou pálido, de medo e de falta de sangue.
Foi tentar fazer qualquer coisa para interromper o sangramento, mas assim que se movimentou, suas tripas escorregaram para fora, caíram, gélidas, em seus pés.
E lá mesmo morreu.
Com as tripas no chão e as borboletas no céu.
quarta-feira, 6 de março de 2013
Roleta Russa.
Continuo com essa vida miserável. Jamais conhecerei o amor da minha vida, continuarei em um emprego que não gosto, rodeado de parasitas, essas pessoas são vampiros, e pessoas com toda sorte de falhas, que apenas pensam no mal dos outros e em pisar uns nos outros. Um dia termino a faculdade, que tornar-se-á um fardo, não que eu não a ame, pelo contrário, mas o problema está em todas as pequenas burocracias, o implícito sentimento de competição e outras coisas igualmente ridículas. Caso-me mais tarde, talvez não porque queira, talvez porque apenas me foi imposto, já era hora de casar para ser normal. Dois filhos, um menino e uma menina, tipicamente normal, crescem saudáveis, tão inteligentes e especiais (pobres deles quando descobrirem que lá fora há milhões tão saudáveis, inteligentes e especiais). Pagarei a escola dos dois, crescerão, meus dois orgulhos, tudo de que me orgulho, um dia entram na faculdade, começam a trabalhar. Aposento-me, quase sou feliz, chego lá.
Continuo com essa vida miserável. Jamais conhecerei o amor da minha vida, continuarei em um emprego que não gosto, rodeado de parasitas, essas pessoas são vampiros, e pessoas com toda sorte de falhas, que apenas pensam no mal dos outros e em pisar uns nos outros. Um dia termino a faculdade, que tornar-se-á um fardo, não que eu não a ame, pelo contrário, mas o problema está em todas as pequenas burocracias, o implícito sentimento de competição e outras coisas igualmente ridículas. Caso-me mais tarde, talvez não porque queira, talvez porque apenas me foi imposto, já era hora de casar para ser normal. Dois filhos, um menino e uma menina, tipicamente normal, crescem saudáveis, tão inteligentes e especiais (pobres deles quando descobrirem que lá fora há milhões tão saudáveis, inteligentes e especiais). Pagarei a escola dos dois, crescerão, meus dois orgulhos, tudo de que me orgulho, um dia entram na faculdade, começam a trabalhar. Aposento-me, quase sou feliz, chego lá.
Dou fim a tudo isso e ainda saio por cima. Eu tinha um futuro tão brilhante pela frente, cresceria no emprego, era um cara tão legal pra se conviver, todos me adoravam, sem exceção. Sinto muito, meu amor, mas eu a abandono e fica apenas imaginando como seria se terminássemos juntos, mas eu a decepcionaria, como é bom ser apenas algo imaginado. Terminaria a faculdade com louvor, pós-graduação, mestrado, doutorado e tudo o mais que jamais faria se tudo isso fosse real. Mas, coitado, escrevia tão bem, poderia virar um grande poeta, chegaria a ser conhecido, reconhecido. Coitado, um grande amigo, um grande filho, um grande aluno, um grande irmão, um grande companheiro de trabalho, sim, de repente eu seria tão grande, maior que todos. O melhor de tudo é que logo me esqueceriam, e eu seria apenas uma possibilidade, um "poderia ter sido", um jogo de azar.
Continuo com essa vida miserável. Jamais conhecerei o amor da minha vida, continuarei em um emprego que não gosto, rodeado de parasitas, essas pessoas são vampiros, e pessoas com toda sorte de falhas, que apenas pensam no mal dos outros e em pisar uns nos outros. Um dia termino a faculdade, que tornar-se-á um fardo, não que eu não a ame, pelo contrário, mas o problema está em todas as pequenas burocracias, o implícito sentimento de competição e outras coisas igualmente ridículas. Caso-me mais tarde, talvez não porque queira, talvez porque apenas me foi imposto, já era hora de casar para ser normal. Dois filhos, um menino e uma menina, tipicamente normal, crescem saudáveis, tão inteligentes e especiais (pobres deles quando descobrirem que lá fora há milhões tão saudáveis, inteligentes e especiais). Pagarei a escola dos dois, crescerão, meus dois orgulhos, tudo de que me orgulho, um dia entram na faculdade, começam a trabalhar. Aposento-me, quase sou feliz, chego lá.
Continuo com essa vida miserável. Jamais conhecerei o amor da minha vida, continuarei em um emprego que não gosto, rodeado de parasitas, essas pessoas são vampiros, e pessoas com toda sorte de falhas, que apenas pensam no mal dos outros e em pisar uns nos outros. Um dia termino a faculdade, que tornar-se-á um fardo, não que eu não a ame, pelo contrário, mas o problema está em todas as pequenas burocracias, o implícito sentimento de competição e outras coisas igualmente ridículas. Caso-me mais tarde, talvez não porque queira, talvez porque apenas me foi imposto, já era hora de casar para ser normal. Dois filhos, um menino e uma menina, tipicamente normal, crescem saudáveis, tão inteligentes e especiais (pobres deles quando descobrirem que lá fora há milhões tão saudáveis, inteligentes e especiais). Pagarei a escola dos dois, crescerão, meus dois orgulhos, tudo de que me orgulho, um dia entram na faculdade, começam a trabalhar. Aposento-me, quase sou feliz, chego lá.
Continuo com essa vida miserável. Jamais conhecerei o amor da minha vida, continuarei em um emprego que não gosto, rodeado de parasitas, essas pessoas são vampiros, e pessoas com toda sorte de falhas, que apenas pensam no mal dos outros e em pisar uns nos outros. Um dia termino a faculdade, que tornar-se-á um fardo, não que eu não a ame, pelo contrário, mas o problema está em todas as pequenas burocracias, o implícito sentimento de competição e outras coisas igualmente ridículas. Caso-me mais tarde, talvez não porque queira, talvez porque apenas me foi imposto, já era hora de casar para ser normal. Dois filhos, um menino e uma menina, tipicamente normal, crescem saudáveis, tão inteligentes e especiais (pobres deles quando descobrirem que lá fora há milhões tão saudáveis, inteligentes e especiais). Pagarei a escola dos dois, crescerão, meus dois orgulhos, tudo de que me orgulho, um dia entram na faculdade, começam a trabalhar. Aposento-me, quase sou feliz, chego lá.
Continuo com essa vida miserável. Jamais conhecerei o amor da minha vida, continuarei em um emprego que não gosto, rodeado de parasitas, essas pessoas são vampiros, e pessoas com toda sorte de falhas, que apenas pensam no mal dos outros e em pisar uns nos outros. Um dia termino a faculdade, que tornar-se-á um fardo, não que eu não a ame, pelo contrário, mas o problema está em todas as pequenas burocracias, o implícito sentimento de competição e outras coisas igualmente ridículas. Caso-me mais tarde, talvez não porque queira, talvez porque apenas me foi imposto, já era hora de casar para ser normal. Dois filhos, um menino e uma menina, tipicamente normal, crescem saudáveis, tão inteligentes e especiais (pobres deles quando descobrirem que lá fora há milhões tão saudáveis, inteligentes e especiais). Pagarei a escola dos dois, crescerão, meus dois orgulhos, tudo de que me orgulho, um dia entram na faculdade, começam a trabalhar. Aposento-me, quase sou feliz, chego lá.
Dou fim a tudo isso e ainda saio por cima. Eu tinha um futuro tão brilhante pela frente, cresceria no emprego, era um cara tão legal pra se conviver, todos me adoravam, sem exceção. Sinto muito, meu amor, mas eu a abandono e fica apenas imaginando como seria se terminássemos juntos, mas eu a decepcionaria, como é bom ser apenas algo imaginado. Terminaria a faculdade com louvor, pós-graduação, mestrado, doutorado e tudo o mais que jamais faria se tudo isso fosse real. Mas, coitado, escrevia tão bem, poderia virar um grande poeta, chegaria a ser conhecido, reconhecido. Coitado, um grande amigo, um grande filho, um grande aluno, um grande irmão, um grande companheiro de trabalho, sim, de repente eu seria tão grande, maior que todos. O melhor de tudo é que logo me esqueceriam, e eu seria apenas uma possibilidade, um "poderia ter sido", um jogo de azar.
Continuo com essa vida miserável. Jamais conhecerei o amor da minha vida, continuarei em um emprego que não gosto, rodeado de parasitas, essas pessoas são vampiros, e pessoas com toda sorte de falhas, que apenas pensam no mal dos outros e em pisar uns nos outros. Um dia termino a faculdade, que tornar-se-á um fardo, não que eu não a ame, pelo contrário, mas o problema está em todas as pequenas burocracias, o implícito sentimento de competição e outras coisas igualmente ridículas. Caso-me mais tarde, talvez não porque queira, talvez porque apenas me foi imposto, já era hora de casar para ser normal. Dois filhos, um menino e uma menina, tipicamente normal, crescem saudáveis, tão inteligentes e especiais (pobres deles quando descobrirem que lá fora há milhões tão saudáveis, inteligentes e especiais). Pagarei a escola dos dois, crescerão, meus dois orgulhos, tudo de que me orgulho, um dia entram na faculdade, começam a trabalhar. Aposento-me, quase sou feliz, chego lá.
Continuo com essa vida miserável. Jamais conhecerei o amor da minha vida, continuarei em um emprego que não gosto, rodeado de parasitas, essas pessoas são vampiros, e pessoas com toda sorte de falhas, que apenas pensam no mal dos outros e em pisar uns nos outros. Um dia termino a faculdade, que tornar-se-á um fardo, não que eu não a ame, pelo contrário, mas o problema está em todas as pequenas burocracias, o implícito sentimento de competição e outras coisas igualmente ridículas. Caso-me mais tarde, talvez não porque queira, talvez porque apenas me foi imposto, já era hora de casar para ser normal. Dois filhos, um menino e uma menina, tipicamente normal, crescem saudáveis, tão inteligentes e especiais (pobres deles quando descobrirem que lá fora há milhões tão saudáveis, inteligentes e especiais). Pagarei a escola dos dois, crescerão, meus dois orgulhos, tudo de que me orgulho, um dia entram na faculdade, começam a trabalhar. Aposento-me, quase sou feliz, chego lá.
Continuo com essa vida miserável. Jamais conhecerei o amor da minha vida, continuarei em um emprego que não gosto, rodeado de parasitas, essas pessoas são vampiros, e pessoas com toda sorte de falhas, que apenas pensam no mal dos outros e em pisar uns nos outros. Um dia termino a faculdade, que tornar-se-á um fardo, não que eu não a ame, pelo contrário, mas o problema está em todas as pequenas burocracias, o implícito sentimento de competição e outras coisas igualmente ridículas. Caso-me mais tarde, talvez não porque queira, talvez porque apenas me foi imposto, já era hora de casar para ser normal. Dois filhos, um menino e uma menina, tipicamente normal, crescem saudáveis, tão inteligentes e especiais (pobres deles quando descobrirem que lá fora há milhões tão saudáveis, inteligentes e especiais). Pagarei a escola dos dois, crescerão, meus dois orgulhos, tudo de que me orgulho, um dia entram na faculdade, começam a trabalhar. Aposento-me, quase sou feliz, chego lá.
Roleta Russa.
Pegou a bala, analisou-a friamente, fechou um dos olhos para vê-la melhor enquanto a erguia com dois dedos. Levou-a à altura da vista. Pressionou-a, era sólida, dura. Sentou-se no meio do quarto, colocou uma perna sobre a outra. Colocou o projétil ao seu lado, perto do revólver cromado. Olhou à sua volta, o quarto estava como sempre esteve, intacto, a cama ajeitada, o baú de brinquedos no canto do quarto, a televisão sintonizada no canal infantil.A única diferença era uma camada de pó que cobria tudo. Seu coração doía, sentia falta dessa calma, do som do tic-tac do relógio na cabeceira que ficava do lado da cama. Seu quarto sempre fora sua fortaleza, lá se sentia pleno, se sentia livre dentro daquelas paredes. Se tinha medo, cobria-se com o lençol com estampa militar.
Muito tempo passara, um, dez anos? Não lembrava, não importava. Todo esse tempo foi desperdiçado, não se lembrava de ter uma boa história, uma grande aventura, uma louca paixão, lembrava apenas do seu quarto, dos planos que arquitetava naquele piso frio. Aquela criança agora estava morta, nunca mais teria aquela inocência, aquela vitalidade. O tempo passou, mas ele continuava estagnado e tinha medo de que fosse apenas isso, sua passagem não fosse notada, sua existência fosse como nada.
Tentou sorrir, mas não, apesar de ser um ótimo mentiroso, não conseguia mentir para si mesmo. Não conseguia balançar a cabeça positivamente e dizer "está tudo bem" como fazia para seus pais. Não conseguia abrir um sorriso que tinha dentes demais e falar "não tem problema" como sempre dissera aos amigos. Ele não precisava de um espelho para ver que seu sorriso a essa hora falso e, por isso, largou mão dessa alegria programada. Com um olhar duro, encarou a arma de fogo, era prateada, o cabo tinha detalhes de madeira, pegou-a com uma mão tremulante, seus dedos delicados pareciam fora de contexto segurando algo tão perigoso, tão viril.
Encontrou a arma no quarto dos pais num dia que estava sozinho em casa, procurava por curativos e ao vasculhar a gaveta do criado-mudo, deparou-se com ela. Nunca disse nada a eles, nem a ninguém, tinha medo do que poderia acontecer ao simplesmente falar em voz alta. Não tinha muitos talentos, não tinha verdadeiras ambições, nenhuma característica física o distinguia dos outros, mas todos poderiam concordar que ele tinha medo, muito medo, de quase tudo. E quando tinha medo, se escondia sob seus lençóis.
Colocou a arma em seu colo, sua respiração era pesada, estava nervoso. Cerrou os olhos e ergueu a cabeça, contou até cinco e encarou o teto, o ventilador girava lentamente, mas ele não sentia calor. Abaixou a cabeça, encarou o revólver. Os olhos fixos, não conseguia ver seu reflexo. Pegou-a e abriu o tambor. Fez com que ele girasse, o som que ele fazia o agradava, como um pedaço de madeira na roda que gira de uma bicicleta, sentiu-se alegre.
A bala da arma era dourada, reluzia no chão do quarto. Agarrou-a com a mão toda e a levou para perto do ouvido. Não fazia ideia de como ela funcionava, mas imaginava que havia pólvora nela, tentou balançá-la, mas nada ouviu. Parou e respirou fundo, o tambor da arma estava aberto. Inseriu o projétil em uma das seis culatras. "Uma chance em seis, 17%"
Fechou o cilindro, girou-o mais uma vez.
Encostou a ponta do cano do lado da cabeça. A arma se afundou em seus cabelos volumosos e negros. Seu dedo encostou no gatilho, segurou-o. Lentamente o pressionava, puxou até o fim.
A bala atravessou sua cabeça, cravou a parede do outro lado. Ele não sentiu nada. A bala passou por dentro de sua cabeça.
"Como se mata algo que nunca viveu?" Se perguntou.
Muito tempo passara, um, dez anos? Não lembrava, não importava. Todo esse tempo foi desperdiçado, não se lembrava de ter uma boa história, uma grande aventura, uma louca paixão, lembrava apenas do seu quarto, dos planos que arquitetava naquele piso frio. Aquela criança agora estava morta, nunca mais teria aquela inocência, aquela vitalidade. O tempo passou, mas ele continuava estagnado e tinha medo de que fosse apenas isso, sua passagem não fosse notada, sua existência fosse como nada.
Tentou sorrir, mas não, apesar de ser um ótimo mentiroso, não conseguia mentir para si mesmo. Não conseguia balançar a cabeça positivamente e dizer "está tudo bem" como fazia para seus pais. Não conseguia abrir um sorriso que tinha dentes demais e falar "não tem problema" como sempre dissera aos amigos. Ele não precisava de um espelho para ver que seu sorriso a essa hora falso e, por isso, largou mão dessa alegria programada. Com um olhar duro, encarou a arma de fogo, era prateada, o cabo tinha detalhes de madeira, pegou-a com uma mão tremulante, seus dedos delicados pareciam fora de contexto segurando algo tão perigoso, tão viril.
Encontrou a arma no quarto dos pais num dia que estava sozinho em casa, procurava por curativos e ao vasculhar a gaveta do criado-mudo, deparou-se com ela. Nunca disse nada a eles, nem a ninguém, tinha medo do que poderia acontecer ao simplesmente falar em voz alta. Não tinha muitos talentos, não tinha verdadeiras ambições, nenhuma característica física o distinguia dos outros, mas todos poderiam concordar que ele tinha medo, muito medo, de quase tudo. E quando tinha medo, se escondia sob seus lençóis.
Colocou a arma em seu colo, sua respiração era pesada, estava nervoso. Cerrou os olhos e ergueu a cabeça, contou até cinco e encarou o teto, o ventilador girava lentamente, mas ele não sentia calor. Abaixou a cabeça, encarou o revólver. Os olhos fixos, não conseguia ver seu reflexo. Pegou-a e abriu o tambor. Fez com que ele girasse, o som que ele fazia o agradava, como um pedaço de madeira na roda que gira de uma bicicleta, sentiu-se alegre.
A bala da arma era dourada, reluzia no chão do quarto. Agarrou-a com a mão toda e a levou para perto do ouvido. Não fazia ideia de como ela funcionava, mas imaginava que havia pólvora nela, tentou balançá-la, mas nada ouviu. Parou e respirou fundo, o tambor da arma estava aberto. Inseriu o projétil em uma das seis culatras. "Uma chance em seis, 17%"
Fechou o cilindro, girou-o mais uma vez.
Encostou a ponta do cano do lado da cabeça. A arma se afundou em seus cabelos volumosos e negros. Seu dedo encostou no gatilho, segurou-o. Lentamente o pressionava, puxou até o fim.
A bala atravessou sua cabeça, cravou a parede do outro lado. Ele não sentiu nada. A bala passou por dentro de sua cabeça.
"Como se mata algo que nunca viveu?" Se perguntou.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
Fraca.
Disseram-lhe que era fraca, e isso a fez pensar: realmente era fraca? Bem, fisicamente não era a pessoa mais forte ou atlética do mundo, mas não era exatamente nesse sentido que diziam isso. Diziam que era fraca por não aguentar críticas.
Sentia-se fraca, sabia que talvez não fosse realmente fraca, mas se sentia fraca, isso era um fato. Mas não é assim que as coisas são, o discurso não constrói a realidade, mas insistiam nisso, pensava que se dissessem que era fraca, ela era fraca, se dissessem que não era boa o suficiente, ela não era. Estava errada, crescera dando mais atenção aos outros do que deveria, talvez isso realmente fosse uma fraqueza, mas não tão grande quanto a que eles lhe faziam pensar. Por vezes ela mesma repetia palavras como estas para si mesma, a sociedade está podre, tudo que dizem está errado. Mas mesmo assim sentia-se fraca.
Fraca.
Fraca, como era fraca. Só de olhá-la podia-se ver sua fragilidade, o rosto fino, pálido, os olhos caídos. Era fraca, tão fraca. O cabelo escorrido, o sorriso pela metade. Fraca.
Todos os dias chegava pela manhã, devagar, silenciosa, não queria causar confusão ou alvoroço, vinha porque tinha de vir, mal tinha amigos, apenas respondia ao que os outros perguntavam, sem delongas, sem demora.
Até que alguém levantasse o tom, até que alguém lhe dissesse que fez algo errado, ou simplesmente implicasse com ela.
Era algo dar errado, como sempre dá, que ela já fraquejava, seus lábios rosados, pequenas pétalas, começavam a tremular. Seus olhos de jaboticaba se afogavam num mar de lágrimas tristes, ela levava as finas mãos à face e tentava esconder toda sua dor. Levantava-se e ia para o banheiro. Tão fraca.
Todos podiam ouvir sair de lá uma voz fina, aguda e embargada em melancolia. O choro era contido, os suspiros calculados, todos já sabiam decor todo a sequência. Os lábios vacilantes, os olhos ensopados, as mãos cobrindo a face envergonhada, o choro. A Fraca.
E dia após dia, apesar de tudo que falávamos pelas costas dela, ela vinha ser fraca. Mostrar sua fraqueza para o mundo, dia após dia, ela lutava, contra tudo, contra todos, principalmente contra si mesma. Dia após dia, ela estava aqui, apesar de tudo, e não aguentava, e ruía. Aquela garota, feita de porcelana, bela e frágil, que nunca fez mal a ninguém, sofria. Todo dia ela sofria. Noite e dia devia sofrer.
Mas ela estava sempre aqui, até ontem.
Como a porcelana, se formos muito brutos, quebra. E em sua fraqueza, quebrou.
Ela era tão fraca, e isso a tornava a mais forte.
Todos os dias chegava pela manhã, devagar, silenciosa, não queria causar confusão ou alvoroço, vinha porque tinha de vir, mal tinha amigos, apenas respondia ao que os outros perguntavam, sem delongas, sem demora.
Até que alguém levantasse o tom, até que alguém lhe dissesse que fez algo errado, ou simplesmente implicasse com ela.
Era algo dar errado, como sempre dá, que ela já fraquejava, seus lábios rosados, pequenas pétalas, começavam a tremular. Seus olhos de jaboticaba se afogavam num mar de lágrimas tristes, ela levava as finas mãos à face e tentava esconder toda sua dor. Levantava-se e ia para o banheiro. Tão fraca.
Todos podiam ouvir sair de lá uma voz fina, aguda e embargada em melancolia. O choro era contido, os suspiros calculados, todos já sabiam decor todo a sequência. Os lábios vacilantes, os olhos ensopados, as mãos cobrindo a face envergonhada, o choro. A Fraca.
E dia após dia, apesar de tudo que falávamos pelas costas dela, ela vinha ser fraca. Mostrar sua fraqueza para o mundo, dia após dia, ela lutava, contra tudo, contra todos, principalmente contra si mesma. Dia após dia, ela estava aqui, apesar de tudo, e não aguentava, e ruía. Aquela garota, feita de porcelana, bela e frágil, que nunca fez mal a ninguém, sofria. Todo dia ela sofria. Noite e dia devia sofrer.
Mas ela estava sempre aqui, até ontem.
Como a porcelana, se formos muito brutos, quebra. E em sua fraqueza, quebrou.
Ela era tão fraca, e isso a tornava a mais forte.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
O Pugilista.
Uma grande parte das apostas dizia que ele cairia cedo, entre o primeiro assalto e o terceiro, o que fazia sentido, pois era jovem e inexperiente, sem contar que o adversário era um lutador renomado, embora agora decadente.
O seu velho treinador discordava, acreditava no potencial do garoto, ele havia vencido diversos torneios quando amador, assim como seus números provavam que ele muito provavelmente daria trabalho a seu adversário.
A sua namorada, todavia, defendia que ele não lutasse. Ela odiava o boxe, cansava-se se vê-lo chegar em casa com tantos hematomas, não aguentava acariciá-lo e causa-lhe dor, o vermelho do sangue não combinava com o azul de seus olhos, ela dizia a ele de maneira bem humorada, pois apesar de não gostar, apoiava o sonho dele por amá-lo tanto.
Ele jogou a toalha.
O Pugilista.
O sino bateu e ele friamente partiu para cima de seu oponente, tinha um olhar duro mas seus olhos estavam em chamas. Cada passo era calculado e de acordo com o movimento do outro ele ajustava o seu próprio, quando alcançou a distância ideal, já cravada em sua mente, levantou sua guarda. As luvas prateadas apontavam para o outro lado do ringue, sabia o que fazia, sempre fizera assim e continuava insuperável.
Um, dois, três. Os dois primeiros atingiram em cheio o rosto do desafiante que, balançando-se para a esquerda, desviou do terceiro jab. "Como um escorpião." Disse para si mesmo, enquanto lançava o braço para trás e, ferozmente, o trazia para a frente, parando apenas na face do jovem boxeador. O Escorpião Rei fez mais uma vítima, sua ferroada estourou no adversário que bambeou, mas conseguiu se equilibrar, ainda zonzo ele tentou recobrar a consciência, mas parecia muito preocupado com algo acima do ombro do campeão, talvez algum lugar na platéia "Vou te ensinar a prestar atenção!", rugiu em silêncio o lutador com seus quase dois metros de altura e, como uma serpente, alcançou o bem menor desafiante, um soco compacto acertou seu estômago, ele se curvou todo, sentia suas tripas prestes a sair pela boca, não podia se esquivar do direto no queixo mas o sino o salvou.
No intervalo seu técnico não falou nada além do habitual, sabia que era inútil, afinal, ele sabia o que fazia, além disso nunca fez o tipo que aceita conselhos facilmente. Do outro lado, o novato estava vermelho de dor, sua palidez habitual sumira, seu sorriso não foi visto durante o primeiro round. Ele continuava procurando por algo fora do ringue, o que enfureceu o campeão.
O sino bateu e ele levantou de um pulo, bateu as luvas e foi terminar o que começara. Os pés mal tocavam o chão, ele era veloz para um homem tão forte, ziguezagueava no sentido do adversário, olhou em seus olhos e via que estava distraído, desconcentrado. Precisava dar-lhe uma lição, tentou de novo um soco compacto no estômago, mas foi bloqueado, com um rápido jogo de pernas deu a volta na defesa e acertou o olho esquerdo do oponente. Ele foi para o chão de tal forma que todos diriam ser impossível levantar, caiu de uma só vez, como se a vida tivesse se esvaído dele. Mas o Escorpião sabia que nada é impossível no Boxe. O juiz levantava os dedos e a contagem chegava ao sete quando o rapaz começou a levantar, ele ergue suas luvas douradas e o árbitro deu continuação à luta.
Seu olho já começava a inchar, olhou para o campeão, ele era enorme, quando se aproximava como um touro crescia ainda mais, sua pele negra suada brilhava no centro do ringue, ele ocupava a arena inteira sozinho, seria impossível derrotá-lo, mas em sua curta trajetória pelo pugilismo sabia que nada era impossível.
Eles se enfrentavam de longe, com a vantagem de ser maior o campeão atingia mais jabs, mas nada que causasse efeito, enquanto o adversário tinha de se esquivar por baixo de seu braço para poder atingi-lo, no final do segundo round finalmente acertou um soco, mas foi como socar uma parede e o atingido não teve a menor reação. O gongo bateu e eles se sentaram novamente.
Seu treinador pedia foco, pedia audácia, coragem, mas sabia que apenas a sorte poderia salvá-lo. Sorte. A sorte é um fator crucial para alguns, é uma verdade virtude, mas ele não poderia pedir que ele fosse sortudo. Seu olho foi desinchado o possível e agora ele podia abrir os dois normalmente, e com isso olhou novamente para a arquibancada.
O sino anunciava o terceiro round. Os dois ficaram uma eternidade parados em seus cantos, o cabelo louro do desafiante balançava com um ar quente que tomava o ringue, ele mantinha os olhos grudados em seu frio adversário, mas ainda prestava atenção lá atrás, em algo, em alguém. O primeiro a se movimentar foi o de calção prateado - da mesma cor das luvas -. Ele se aproximou metodicamente, pôs sua guarda e parou. "Essa é a sua chance de entrar nessa luta, não espere que eu a leve até você" ele disse com os olhos, o de calção vermelho se postou para atacar, suas pernas se movimentaram rápido e eles estavam praticamente grudados um ao outro, os rostos quase se chocaram, ele deu uma verdadeira agulhada no corpo do campeão, outra com a esquerda, e outra, chegou à quinta e viu que de nada adiantaria, o negro quase abriu um sorriso, sua luva esquerda, preenchida por um punho fechado, voou do lado da cabeça do jovem. O jovem, preenchido por uma alma quebrada, voou até a lona. No cinco ele estava de pé. Via dois árbitros, dois adversários, e não via nada lá atrás. O juiz seguiu a luta, e o sino bateu.
Seu treinador mandava acabar logo com isso, mas o campeão não aceitava a sugestão. Ele ria e balançava a cabeça negativamente.
O quarto round começou com uma chuva de socos do desafiante, ele não parou um segundo para respirar, sentia que o campeão estava por ruir, mas sabia que não aguentaria esse ritmo por mais dois turnos. O campeão somente na defesa sentia o potencial do adversário, mas queria mais. O gongo bateu e eles se sentaram novamente.
O coach do mais inexperiente pedia para que ele se poupasse e não cometesse loucuras. Ele rebatia dizendo que de nada adiantaria ir até o final, então era melhor tentar acabar com tudo antes, de uma forma ou de outra.
Quando o quinto round se iniciou, ele parou para sentir. Sentia toda a força do campeão, que podia ganhar sem mesmo lançar um golpe sequer; sentia a platéia, torcendo por ele, mas desacreditada, sentia seu treinador, perdido, talvez mais do que ele, apenas orando para que conseguissem. Sentiu medo, e com o medo, sentiu coragem.
Afundou seu pé direito no tablado, tinha de usar todas suas armas.
O campeão se surpreendeu por um segundo, ouvira que ele fazia isso, mas não achou que usaria contra ele. "Eu odeio canhotos." Pensou, sorriu de lado. Foi em direção do adversário, sem guarda alguma "Me mostre porque te chamam de Príncipe, me mostre que pode roubar minha coroa", lançou um golpe rápido de esquerda, um soco espelhado chegou ao seu rosto antes, ele forçou seu peso para não sair do lugar. Sorriu. Antes de fazer o movimento seguinte, um direto de esquerda acertou seu rosto, deu dois passos para trás e bufou. Levantou as mãos na altura do rosto, mudou sua postura, gingou até chegar ao Príncipe, os dois lançaram um direto. Ele acertou em cheio, e conseguiu abafar o adversário fazendo com a cabeça o mesmo movimento que o soco. O sino interrompeu a batalha que se inciaria.
Ele caminhou como se em cada passo carregasse toda sua vida, olhou para o treinador e apenas balançou a cabeça. O velho concordou "ele é bom". "Ou louco" completou o boxeador. O resto do minuto ficou calado, observando seu adversário que tentava estancar o corte que o soco causara em seu supercílio.
O sexto turno levou mais meio minuto para se iniciar, pois o juiz fora analisar se o jovem boxeador poderia continuar. Eles caminharam lentamente para o centro do ringue mas permaneceram sem se agredir, o desafiante olhou de soslaio para trás, e o campeão se irou, rangendo os dentes, partiu para o adversário, seus socos caíam como mísseis de bombardeiros, voavam e assoviavam rumo a cabeça do Príncipe. O príncipe valsava, desviava dos socos óbvios, pulava para trás, dava a volta no ringue, não poderia correr o risco de abrir o ferimento. O campeão então parou por um momento a fim de se recompor. Quando deu um passo mais sóbrio o sino bateu. Percebeu que perdera uma grande oportunidade, e preocupava-se mais em estar caindo numa confusa tática do oponente.
Quando se sentou, o jovem, que parecia um rapaz franzino e magricela perto do robusto adversário, estava esgotado, não aguentava mais, tinha de acabar logo com tudo.
Nem mesmo o sino soou e os lutadores já se digladiavam no centro do ringue, os socos voavam e passavam a polegadas dos seus alvos, o maior lançava socos que poderiam derrubar árvores, o menor lançava três vezes mais socos, mas os que atingia não eram suficientes. O ébano campeão acertou uma esquerda no corpo de ebúrneo adversário, ele se contorceu, mas voltou ao lugar, enquanto o campeão forçava seu punho, ele resistiu à dor e aproveitou para acertar o Escorpião, um, dois, três cruzados em sua face, como se batesse um sino de igreja. O Rei ficou zonzo, cambaleou para trás, o Príncipe desferiu mais um golpe, direto no meio do rosto. Ele sentiu a vibração do soco em toda sua espinha, sabia que tinha causado estrago, tirou a luva lentamente, o adversário pareceu planar por alguns segundos, fora de órbita, fora de si. Caiu, seco, duro. Sua queda reverberou, a platéia segurou a respiração. O desafiante olhou novamente para onde sempre olhara, depois deu as costas, como um paladino que levanta um olifante, ergueu seu punho para a torcida. Todos gritavam, afinal de contas, o amavam. O ruído era ensurdecedor, mas todos ficaram mudos quando com quatro segundos o campeão levantou-se, ainda abatido, mas de pé. O juiz fez sinal para prosseguirem, mas novamente o sino bateu.
"Acho que é ele, acho que finalmente posso passar o bastão" disse o campeão com uma ponta de ânimo em sua voz, o treinador não respondeu, apenas interrompeu o sangramento do nariz de seu lutador.
Mas antes de levantar, ele percebeu que o rapaz continuava olhando para algum lugar, ele se virou e procurou algo de diferente, mas para ele a platéia sempre foi apenas uma paisagem, ergueu-se e quis decidir as coisas.
O sino bateu. Os lutadores se postaram. A platéia gritava. O campeão caminhou. O desafiante aguardou. Três socos, bloqueados. Um direto. Esquivado. Engatilhou um golpe. O soco do Escorpião. Muito aberto. Muito óbvio. Foi contra-atacado. Caiu.
A platéia gritava ainda mais, flashes de todos os lados, era isso que todos queriam ver, o campeão local tomar o trono. Conquistar o cetro. O Príncipe podia derrotar o Rei, é o rumo natural das coisas.
Ele olhava novamente para a platéia, seus olhos cerúleos pareciam preocupados, mais preocupados do que com a própria luta. Do chão o campeão observava a procura do desafiante. Levantou-se lentamente, o juiz estava no seis, ele se levantou seguro. Postou a guarda, antes do juiz liberá-lo, gritou ao adversário. "Preste atenção na luta. Você é um lutador." Surpreso o adversário somente sorriu.
Era esse sorriso que todos queriam ver. Os dois se aproximaram novamente. Um jab esquivado, outro protegido, o terceiro acertou mas não tinha força. O Príncipe sabia que ia ganhar, a luta era dele. Mas ele não contava com outro soco do Escorpião. O soco feio venenoso, sorrateiro, o acertou, o perfurou, bem em cheio, a presa foi atingida. Ele se agarrou às cordas para não cair, suas pernas não lhe obedeciam. Ele foi ferroado pelo Escorpião diversas vezes, estava prestes a ceder, seu corpo não se aguentava em pé. Mas o campeão, parou, respirou, sorriu e quando foi finalizá-lo o gongo intercedeu uma última vez.
"O próximo é o último." Disse o treinador, o Príncipe murmurou algo enquanto recuperava sua energia.
"Um pugilista precisa saber apanhar. Um pugilista precisa saber sofrer. Um pugilista é masoquista. Ele sorri quando leva socos, ele está feliz no chão, derrotado. Qualquer um sabe vencer. Um verdadeiro pugilista aprende a perder. De uma maneira ou de outra." O Escorpião falou, jogando as palavras no ar.
"Está na hora de aprendermos."
O sino bateu. Nada mais importava. O campeão olhou para seu oponente, o primeiro digno de lhe tomar o cinturão. Mas ele estava olhando por cima de seu ombro. Ele não entendia, ele se enfureceu, perdeu a razão. Quando ia atacá-lo, o Príncipe olhou em seus olhos, havia um brilho, um brilho que ele não notara até então, os olhos inchados não escondiam, havia uma chama, um coração partido, uma esperança, uma vida inteira, um propósito. Era um Pugilista de verdade.
Os dois caminharam ao centro, o Príncipe lançou seu braço de marfim, mas errou em muito, já não tinha mais energia. O Rei lançou seu ferrão, mas o oponente se defendeu formando uma cruz com os braços. O brilho em seus olho não era fé, era algo mais real, era algo maior. O pequeno quase se desmontou ao aguentar o impacto do maior. Ele pôs o pé direito à sua frente. "Eu odeio canhotos" o Escorpião disse ao Príncipe enquanto ria. O agora campeão riu e disse "Eu acho que odeio lutar." E acertou um soco, um raio que cruzou à frente do Escorpião.
Ele caiu, todos ficaram em silêncio. Dez segundos passaram, sessenta. Ele caído, o vencedor de pé, olhando para cima, os olhos vazios. Ele vencera todos, mas não a si mesmo. Sem sorrir ergueu o cinturão.
O Pugilista viu o outro ir embora, para dar as entrevistas de campeão. "Campeão". "Ex-campeão". "Ex-Pugilista".
Foi nocauteado. Jogou a toalha.
Um, dois, três. Os dois primeiros atingiram em cheio o rosto do desafiante que, balançando-se para a esquerda, desviou do terceiro jab. "Como um escorpião." Disse para si mesmo, enquanto lançava o braço para trás e, ferozmente, o trazia para a frente, parando apenas na face do jovem boxeador. O Escorpião Rei fez mais uma vítima, sua ferroada estourou no adversário que bambeou, mas conseguiu se equilibrar, ainda zonzo ele tentou recobrar a consciência, mas parecia muito preocupado com algo acima do ombro do campeão, talvez algum lugar na platéia "Vou te ensinar a prestar atenção!", rugiu em silêncio o lutador com seus quase dois metros de altura e, como uma serpente, alcançou o bem menor desafiante, um soco compacto acertou seu estômago, ele se curvou todo, sentia suas tripas prestes a sair pela boca, não podia se esquivar do direto no queixo mas o sino o salvou.
No intervalo seu técnico não falou nada além do habitual, sabia que era inútil, afinal, ele sabia o que fazia, além disso nunca fez o tipo que aceita conselhos facilmente. Do outro lado, o novato estava vermelho de dor, sua palidez habitual sumira, seu sorriso não foi visto durante o primeiro round. Ele continuava procurando por algo fora do ringue, o que enfureceu o campeão.
O sino bateu e ele levantou de um pulo, bateu as luvas e foi terminar o que começara. Os pés mal tocavam o chão, ele era veloz para um homem tão forte, ziguezagueava no sentido do adversário, olhou em seus olhos e via que estava distraído, desconcentrado. Precisava dar-lhe uma lição, tentou de novo um soco compacto no estômago, mas foi bloqueado, com um rápido jogo de pernas deu a volta na defesa e acertou o olho esquerdo do oponente. Ele foi para o chão de tal forma que todos diriam ser impossível levantar, caiu de uma só vez, como se a vida tivesse se esvaído dele. Mas o Escorpião sabia que nada é impossível no Boxe. O juiz levantava os dedos e a contagem chegava ao sete quando o rapaz começou a levantar, ele ergue suas luvas douradas e o árbitro deu continuação à luta.
Seu olho já começava a inchar, olhou para o campeão, ele era enorme, quando se aproximava como um touro crescia ainda mais, sua pele negra suada brilhava no centro do ringue, ele ocupava a arena inteira sozinho, seria impossível derrotá-lo, mas em sua curta trajetória pelo pugilismo sabia que nada era impossível.
Eles se enfrentavam de longe, com a vantagem de ser maior o campeão atingia mais jabs, mas nada que causasse efeito, enquanto o adversário tinha de se esquivar por baixo de seu braço para poder atingi-lo, no final do segundo round finalmente acertou um soco, mas foi como socar uma parede e o atingido não teve a menor reação. O gongo bateu e eles se sentaram novamente.
Seu treinador pedia foco, pedia audácia, coragem, mas sabia que apenas a sorte poderia salvá-lo. Sorte. A sorte é um fator crucial para alguns, é uma verdade virtude, mas ele não poderia pedir que ele fosse sortudo. Seu olho foi desinchado o possível e agora ele podia abrir os dois normalmente, e com isso olhou novamente para a arquibancada.
O sino anunciava o terceiro round. Os dois ficaram uma eternidade parados em seus cantos, o cabelo louro do desafiante balançava com um ar quente que tomava o ringue, ele mantinha os olhos grudados em seu frio adversário, mas ainda prestava atenção lá atrás, em algo, em alguém. O primeiro a se movimentar foi o de calção prateado - da mesma cor das luvas -. Ele se aproximou metodicamente, pôs sua guarda e parou. "Essa é a sua chance de entrar nessa luta, não espere que eu a leve até você" ele disse com os olhos, o de calção vermelho se postou para atacar, suas pernas se movimentaram rápido e eles estavam praticamente grudados um ao outro, os rostos quase se chocaram, ele deu uma verdadeira agulhada no corpo do campeão, outra com a esquerda, e outra, chegou à quinta e viu que de nada adiantaria, o negro quase abriu um sorriso, sua luva esquerda, preenchida por um punho fechado, voou do lado da cabeça do jovem. O jovem, preenchido por uma alma quebrada, voou até a lona. No cinco ele estava de pé. Via dois árbitros, dois adversários, e não via nada lá atrás. O juiz seguiu a luta, e o sino bateu.
Seu treinador mandava acabar logo com isso, mas o campeão não aceitava a sugestão. Ele ria e balançava a cabeça negativamente.
O quarto round começou com uma chuva de socos do desafiante, ele não parou um segundo para respirar, sentia que o campeão estava por ruir, mas sabia que não aguentaria esse ritmo por mais dois turnos. O campeão somente na defesa sentia o potencial do adversário, mas queria mais. O gongo bateu e eles se sentaram novamente.
O coach do mais inexperiente pedia para que ele se poupasse e não cometesse loucuras. Ele rebatia dizendo que de nada adiantaria ir até o final, então era melhor tentar acabar com tudo antes, de uma forma ou de outra.
Quando o quinto round se iniciou, ele parou para sentir. Sentia toda a força do campeão, que podia ganhar sem mesmo lançar um golpe sequer; sentia a platéia, torcendo por ele, mas desacreditada, sentia seu treinador, perdido, talvez mais do que ele, apenas orando para que conseguissem. Sentiu medo, e com o medo, sentiu coragem.
Afundou seu pé direito no tablado, tinha de usar todas suas armas.
O campeão se surpreendeu por um segundo, ouvira que ele fazia isso, mas não achou que usaria contra ele. "Eu odeio canhotos." Pensou, sorriu de lado. Foi em direção do adversário, sem guarda alguma "Me mostre porque te chamam de Príncipe, me mostre que pode roubar minha coroa", lançou um golpe rápido de esquerda, um soco espelhado chegou ao seu rosto antes, ele forçou seu peso para não sair do lugar. Sorriu. Antes de fazer o movimento seguinte, um direto de esquerda acertou seu rosto, deu dois passos para trás e bufou. Levantou as mãos na altura do rosto, mudou sua postura, gingou até chegar ao Príncipe, os dois lançaram um direto. Ele acertou em cheio, e conseguiu abafar o adversário fazendo com a cabeça o mesmo movimento que o soco. O sino interrompeu a batalha que se inciaria.
Ele caminhou como se em cada passo carregasse toda sua vida, olhou para o treinador e apenas balançou a cabeça. O velho concordou "ele é bom". "Ou louco" completou o boxeador. O resto do minuto ficou calado, observando seu adversário que tentava estancar o corte que o soco causara em seu supercílio.
O sexto turno levou mais meio minuto para se iniciar, pois o juiz fora analisar se o jovem boxeador poderia continuar. Eles caminharam lentamente para o centro do ringue mas permaneceram sem se agredir, o desafiante olhou de soslaio para trás, e o campeão se irou, rangendo os dentes, partiu para o adversário, seus socos caíam como mísseis de bombardeiros, voavam e assoviavam rumo a cabeça do Príncipe. O príncipe valsava, desviava dos socos óbvios, pulava para trás, dava a volta no ringue, não poderia correr o risco de abrir o ferimento. O campeão então parou por um momento a fim de se recompor. Quando deu um passo mais sóbrio o sino bateu. Percebeu que perdera uma grande oportunidade, e preocupava-se mais em estar caindo numa confusa tática do oponente.
Quando se sentou, o jovem, que parecia um rapaz franzino e magricela perto do robusto adversário, estava esgotado, não aguentava mais, tinha de acabar logo com tudo.
Nem mesmo o sino soou e os lutadores já se digladiavam no centro do ringue, os socos voavam e passavam a polegadas dos seus alvos, o maior lançava socos que poderiam derrubar árvores, o menor lançava três vezes mais socos, mas os que atingia não eram suficientes. O ébano campeão acertou uma esquerda no corpo de ebúrneo adversário, ele se contorceu, mas voltou ao lugar, enquanto o campeão forçava seu punho, ele resistiu à dor e aproveitou para acertar o Escorpião, um, dois, três cruzados em sua face, como se batesse um sino de igreja. O Rei ficou zonzo, cambaleou para trás, o Príncipe desferiu mais um golpe, direto no meio do rosto. Ele sentiu a vibração do soco em toda sua espinha, sabia que tinha causado estrago, tirou a luva lentamente, o adversário pareceu planar por alguns segundos, fora de órbita, fora de si. Caiu, seco, duro. Sua queda reverberou, a platéia segurou a respiração. O desafiante olhou novamente para onde sempre olhara, depois deu as costas, como um paladino que levanta um olifante, ergueu seu punho para a torcida. Todos gritavam, afinal de contas, o amavam. O ruído era ensurdecedor, mas todos ficaram mudos quando com quatro segundos o campeão levantou-se, ainda abatido, mas de pé. O juiz fez sinal para prosseguirem, mas novamente o sino bateu.
"Acho que é ele, acho que finalmente posso passar o bastão" disse o campeão com uma ponta de ânimo em sua voz, o treinador não respondeu, apenas interrompeu o sangramento do nariz de seu lutador.
Mas antes de levantar, ele percebeu que o rapaz continuava olhando para algum lugar, ele se virou e procurou algo de diferente, mas para ele a platéia sempre foi apenas uma paisagem, ergueu-se e quis decidir as coisas.
O sino bateu. Os lutadores se postaram. A platéia gritava. O campeão caminhou. O desafiante aguardou. Três socos, bloqueados. Um direto. Esquivado. Engatilhou um golpe. O soco do Escorpião. Muito aberto. Muito óbvio. Foi contra-atacado. Caiu.
A platéia gritava ainda mais, flashes de todos os lados, era isso que todos queriam ver, o campeão local tomar o trono. Conquistar o cetro. O Príncipe podia derrotar o Rei, é o rumo natural das coisas.
Ele olhava novamente para a platéia, seus olhos cerúleos pareciam preocupados, mais preocupados do que com a própria luta. Do chão o campeão observava a procura do desafiante. Levantou-se lentamente, o juiz estava no seis, ele se levantou seguro. Postou a guarda, antes do juiz liberá-lo, gritou ao adversário. "Preste atenção na luta. Você é um lutador." Surpreso o adversário somente sorriu.
Era esse sorriso que todos queriam ver. Os dois se aproximaram novamente. Um jab esquivado, outro protegido, o terceiro acertou mas não tinha força. O Príncipe sabia que ia ganhar, a luta era dele. Mas ele não contava com outro soco do Escorpião. O soco feio venenoso, sorrateiro, o acertou, o perfurou, bem em cheio, a presa foi atingida. Ele se agarrou às cordas para não cair, suas pernas não lhe obedeciam. Ele foi ferroado pelo Escorpião diversas vezes, estava prestes a ceder, seu corpo não se aguentava em pé. Mas o campeão, parou, respirou, sorriu e quando foi finalizá-lo o gongo intercedeu uma última vez.
"O próximo é o último." Disse o treinador, o Príncipe murmurou algo enquanto recuperava sua energia.
"Um pugilista precisa saber apanhar. Um pugilista precisa saber sofrer. Um pugilista é masoquista. Ele sorri quando leva socos, ele está feliz no chão, derrotado. Qualquer um sabe vencer. Um verdadeiro pugilista aprende a perder. De uma maneira ou de outra." O Escorpião falou, jogando as palavras no ar.
"Está na hora de aprendermos."
O sino bateu. Nada mais importava. O campeão olhou para seu oponente, o primeiro digno de lhe tomar o cinturão. Mas ele estava olhando por cima de seu ombro. Ele não entendia, ele se enfureceu, perdeu a razão. Quando ia atacá-lo, o Príncipe olhou em seus olhos, havia um brilho, um brilho que ele não notara até então, os olhos inchados não escondiam, havia uma chama, um coração partido, uma esperança, uma vida inteira, um propósito. Era um Pugilista de verdade.
Os dois caminharam ao centro, o Príncipe lançou seu braço de marfim, mas errou em muito, já não tinha mais energia. O Rei lançou seu ferrão, mas o oponente se defendeu formando uma cruz com os braços. O brilho em seus olho não era fé, era algo mais real, era algo maior. O pequeno quase se desmontou ao aguentar o impacto do maior. Ele pôs o pé direito à sua frente. "Eu odeio canhotos" o Escorpião disse ao Príncipe enquanto ria. O agora campeão riu e disse "Eu acho que odeio lutar." E acertou um soco, um raio que cruzou à frente do Escorpião.
Ele caiu, todos ficaram em silêncio. Dez segundos passaram, sessenta. Ele caído, o vencedor de pé, olhando para cima, os olhos vazios. Ele vencera todos, mas não a si mesmo. Sem sorrir ergueu o cinturão.
O Pugilista viu o outro ir embora, para dar as entrevistas de campeão. "Campeão". "Ex-campeão". "Ex-Pugilista".
Foi nocauteado. Jogou a toalha.
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