quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Pugilista.

Uma grande parte das apostas dizia que ele cairia cedo, entre o primeiro assalto e o terceiro, o que fazia sentido, pois era jovem e inexperiente, sem contar que o adversário era um lutador renomado, embora agora decadente.
O seu velho treinador discordava, acreditava no potencial do garoto, ele havia vencido diversos torneios quando amador, assim como seus números provavam que ele muito provavelmente daria trabalho a seu adversário.
A sua namorada, todavia, defendia que ele não lutasse. Ela odiava o boxe, cansava-se se vê-lo chegar em casa com tantos hematomas, não aguentava acariciá-lo e causa-lhe dor, o vermelho do sangue não combinava com o azul de seus olhos, ela dizia a ele de maneira bem humorada, pois apesar de não gostar, apoiava o sonho dele por amá-lo tanto.
Ele jogou a toalha.

O Pugilista.

O sino bateu e ele friamente partiu para cima de seu oponente, tinha um olhar duro mas seus olhos estavam em chamas. Cada passo era calculado e de acordo com o movimento do outro ele ajustava o seu próprio, quando alcançou a distância ideal, já cravada em sua mente, levantou sua guarda. As luvas prateadas apontavam para o outro lado do ringue, sabia o que fazia, sempre fizera assim e continuava insuperável.
Um, dois, três. Os dois primeiros atingiram em cheio o rosto do desafiante que, balançando-se para a esquerda, desviou do terceiro jab. "Como um escorpião." Disse para si mesmo, enquanto lançava o braço para trás e, ferozmente, o trazia para a frente, parando apenas na face do jovem boxeador. O Escorpião Rei fez mais uma vítima, sua ferroada estourou no adversário que bambeou, mas conseguiu se equilibrar, ainda zonzo ele tentou recobrar a consciência, mas parecia muito preocupado com algo acima do ombro do campeão, talvez algum lugar na platéia "Vou te ensinar a prestar atenção!", rugiu em silêncio o lutador com seus quase dois metros de altura e, como uma serpente, alcançou o bem menor desafiante, um soco compacto acertou seu estômago, ele se curvou todo, sentia suas tripas prestes a sair pela boca, não podia se esquivar do direto no queixo mas o sino o salvou.
No intervalo seu técnico não falou nada além do habitual, sabia que era inútil, afinal, ele sabia o que fazia, além disso nunca fez o tipo que aceita conselhos facilmente. Do outro lado, o novato estava vermelho de dor, sua palidez habitual sumira, seu sorriso não foi visto durante o primeiro round. Ele continuava procurando por algo fora do ringue, o que enfureceu o campeão. 

O sino bateu e ele levantou de um pulo, bateu as luvas e foi terminar o que começara. Os pés mal tocavam o chão, ele era veloz para um homem tão forte, ziguezagueava no sentido do adversário, olhou em seus olhos e via que estava distraído, desconcentrado. Precisava dar-lhe uma lição, tentou de novo um soco compacto no estômago, mas foi bloqueado, com um rápido jogo de pernas deu a volta na defesa e acertou o olho esquerdo do oponente. Ele foi para o chão de tal forma que todos diriam ser impossível levantar, caiu de uma só vez, como se a vida tivesse se esvaído dele. Mas o Escorpião sabia que nada é impossível no Boxe. O juiz levantava os dedos e a contagem chegava ao sete quando o rapaz começou a levantar, ele ergue suas luvas douradas e o árbitro deu continuação à luta.
Seu olho já começava a inchar, olhou para o campeão, ele era enorme, quando se aproximava como um touro crescia ainda mais, sua pele negra suada brilhava no centro do ringue, ele ocupava a arena inteira sozinho, seria impossível derrotá-lo, mas em sua curta trajetória pelo pugilismo sabia que nada era impossível. 
Eles se enfrentavam de longe, com a vantagem de ser maior o campeão atingia mais jabs, mas nada que causasse efeito, enquanto o adversário tinha de se esquivar por baixo de seu braço para poder atingi-lo, no final do segundo round finalmente acertou um soco, mas foi como socar uma parede e o atingido não teve a menor reação. O gongo bateu e eles se sentaram novamente.
Seu treinador pedia foco, pedia audácia, coragem, mas sabia que apenas a sorte poderia salvá-lo. Sorte. A sorte é um fator crucial para alguns, é uma verdade virtude, mas ele não poderia pedir que ele fosse sortudo. Seu olho foi desinchado o possível e agora ele podia abrir os dois normalmente, e com isso olhou novamente para a arquibancada. 

O sino anunciava o terceiro round. Os dois ficaram uma eternidade parados em seus cantos, o cabelo louro do desafiante balançava com um ar quente que tomava o ringue, ele mantinha os olhos grudados em seu frio adversário, mas ainda prestava atenção lá atrás, em algo, em alguém. O primeiro a se movimentar foi o de calção prateado - da mesma cor das luvas -. Ele se aproximou metodicamente, pôs sua guarda e parou. "Essa é a sua chance de entrar nessa luta, não espere que eu a leve até você" ele disse com os olhos, o de calção vermelho se postou para atacar, suas pernas se movimentaram rápido e eles estavam praticamente grudados um ao outro, os rostos quase se chocaram, ele deu uma verdadeira agulhada no corpo do campeão, outra com a esquerda, e outra, chegou à quinta e viu que de nada adiantaria, o negro quase abriu um sorriso, sua luva esquerda, preenchida por um punho fechado, voou do lado da cabeça do jovem. O jovem, preenchido por uma alma quebrada, voou até a lona. No cinco ele estava de pé. Via dois árbitros, dois adversários, e não via nada lá atrás. O juiz seguiu a luta, e o sino bateu.
Seu treinador mandava acabar logo com isso, mas o campeão não aceitava a sugestão. Ele ria e balançava a cabeça negativamente. 

O quarto round começou com uma chuva de socos do desafiante, ele não parou um segundo para respirar, sentia que o campeão estava por ruir, mas sabia que não aguentaria esse ritmo por mais dois turnos. O campeão somente na defesa sentia o potencial do adversário, mas queria mais. O gongo bateu e eles se sentaram novamente.
O coach do mais inexperiente pedia para que ele se poupasse e não cometesse loucuras. Ele rebatia dizendo que de nada adiantaria ir até o final, então era melhor tentar acabar com tudo antes, de uma forma ou de outra.

Quando o quinto round se iniciou, ele parou para sentir. Sentia toda a força do campeão, que podia ganhar sem mesmo lançar um golpe sequer; sentia a platéia, torcendo por ele, mas desacreditada, sentia seu treinador, perdido, talvez mais do que ele, apenas orando para que conseguissem. Sentiu medo, e com o medo, sentiu coragem. 
Afundou seu pé direito no tablado, tinha de usar todas suas armas.
O campeão se surpreendeu por um segundo, ouvira que ele fazia isso, mas não achou que usaria contra ele. "Eu odeio canhotos." Pensou, sorriu de lado. Foi em direção do adversário, sem guarda alguma "Me mostre porque te chamam de Príncipe, me mostre que pode roubar minha coroa", lançou um golpe rápido de esquerda, um soco espelhado chegou ao seu rosto antes, ele forçou seu peso para não sair do lugar. Sorriu. Antes de fazer o movimento seguinte, um direto de esquerda acertou seu rosto, deu dois passos para trás e bufou. Levantou as mãos na altura do rosto, mudou sua postura, gingou até chegar ao Príncipe, os dois lançaram um direto. Ele acertou em cheio, e conseguiu abafar o adversário fazendo com a cabeça o mesmo movimento que o soco. O sino interrompeu a batalha que se inciaria.
Ele caminhou como se em cada passo carregasse toda sua vida, olhou para o treinador e apenas balançou a cabeça. O velho concordou "ele é bom". "Ou louco" completou o boxeador. O resto do minuto ficou calado, observando seu adversário que tentava estancar o corte que o soco causara em seu supercílio.

O sexto turno levou mais meio minuto para se iniciar, pois o juiz fora analisar se o jovem boxeador poderia continuar. Eles caminharam lentamente para o centro do ringue mas permaneceram sem se agredir, o desafiante olhou de soslaio para trás, e o campeão se irou, rangendo os dentes, partiu para o adversário, seus socos caíam como mísseis de bombardeiros, voavam e assoviavam rumo a cabeça do Príncipe. O príncipe valsava, desviava dos socos óbvios, pulava para trás, dava a volta no ringue, não poderia correr o risco de abrir o ferimento. O campeão então parou por um momento a fim de se recompor. Quando deu um passo mais sóbrio o sino bateu. Percebeu que perdera uma grande oportunidade, e preocupava-se mais em estar caindo numa confusa tática do oponente.
Quando se sentou, o jovem, que parecia um rapaz franzino e magricela perto do robusto adversário, estava esgotado, não aguentava mais, tinha de acabar logo com tudo.

Nem mesmo o sino soou e os lutadores já se digladiavam no centro do ringue, os socos voavam e passavam  a polegadas dos seus alvos, o maior lançava socos que poderiam derrubar árvores, o menor lançava três vezes mais socos, mas os que atingia não eram suficientes. O ébano campeão acertou uma esquerda no corpo de ebúrneo adversário, ele se contorceu, mas voltou ao lugar, enquanto o campeão forçava seu punho, ele resistiu à dor e aproveitou para acertar o Escorpião, um, dois, três cruzados em sua face, como se batesse um sino de igreja. O Rei ficou zonzo, cambaleou para trás, o Príncipe desferiu mais um golpe, direto no meio do rosto. Ele sentiu a vibração do soco em toda sua espinha, sabia que tinha causado estrago, tirou a luva lentamente, o adversário pareceu planar por alguns segundos, fora de órbita, fora de si. Caiu, seco, duro. Sua queda reverberou, a platéia segurou a respiração. O desafiante olhou novamente para onde sempre olhara, depois deu as costas, como um paladino que levanta um olifante, ergueu seu punho para a torcida. Todos gritavam, afinal de contas, o amavam. O ruído era ensurdecedor, mas todos ficaram mudos quando com quatro segundos o campeão levantou-se, ainda abatido, mas de pé. O juiz fez sinal para prosseguirem, mas novamente o sino bateu.
"Acho que é ele, acho que finalmente posso passar o bastão" disse o campeão com uma ponta de ânimo em sua voz, o treinador não respondeu, apenas interrompeu o sangramento do nariz de seu lutador.
Mas antes de levantar, ele percebeu que o rapaz continuava olhando para algum lugar, ele se virou e procurou algo de diferente, mas para ele a platéia sempre foi apenas uma paisagem, ergueu-se e quis decidir as coisas.

O sino bateu. Os lutadores se postaram. A platéia gritava. O campeão caminhou. O desafiante aguardou. Três socos, bloqueados. Um direto. Esquivado. Engatilhou um golpe. O soco do Escorpião. Muito aberto. Muito óbvio. Foi contra-atacado. Caiu.
A platéia gritava ainda mais, flashes de todos os lados, era isso que todos queriam ver, o campeão local tomar o trono. Conquistar o cetro. O Príncipe podia derrotar o Rei, é o rumo natural das coisas.
Ele olhava novamente para a platéia, seus olhos cerúleos pareciam preocupados, mais preocupados do que com a própria luta. Do chão o campeão observava a procura do desafiante. Levantou-se lentamente, o juiz estava no seis, ele se levantou seguro. Postou a guarda, antes do juiz liberá-lo, gritou ao adversário. "Preste atenção na luta. Você é um lutador." Surpreso o adversário somente sorriu.
Era esse sorriso que todos queriam ver. Os dois se aproximaram novamente. Um jab esquivado, outro protegido, o terceiro acertou mas não tinha força. O Príncipe sabia que ia ganhar, a luta era dele. Mas ele não contava com outro soco do Escorpião. O soco feio venenoso, sorrateiro, o acertou, o perfurou, bem em cheio, a presa foi atingida. Ele se agarrou às cordas para não cair, suas pernas não lhe obedeciam. Ele foi ferroado pelo Escorpião diversas vezes, estava prestes a ceder, seu corpo não se aguentava em pé. Mas o campeão, parou, respirou, sorriu e quando foi finalizá-lo o gongo intercedeu uma última vez.
"O próximo é o último." Disse o treinador, o Príncipe murmurou algo enquanto recuperava sua energia.
"Um pugilista precisa saber apanhar. Um pugilista precisa saber sofrer. Um pugilista é masoquista. Ele sorri quando leva socos, ele está feliz no chão, derrotado. Qualquer um sabe vencer. Um verdadeiro pugilista aprende a perder. De uma maneira ou de outra." O Escorpião falou, jogando as palavras no ar.
"Está na hora de aprendermos."

O sino bateu. Nada mais importava. O campeão olhou para seu oponente, o primeiro digno de lhe tomar o cinturão. Mas ele estava olhando por cima de seu ombro. Ele não entendia, ele se enfureceu, perdeu a razão. Quando ia atacá-lo, o Príncipe olhou em seus olhos, havia um brilho, um brilho que ele não notara até então, os olhos inchados não escondiam, havia uma chama, um coração partido, uma esperança, uma vida inteira, um propósito. Era um Pugilista de verdade.
Os dois caminharam ao centro, o Príncipe lançou seu braço de marfim, mas errou em muito, já não tinha mais energia. O Rei lançou seu ferrão, mas o oponente se defendeu formando uma cruz com os braços. O brilho em seus olho não era fé, era algo mais real, era algo maior. O pequeno quase se desmontou ao aguentar o impacto do maior. Ele pôs o pé direito à sua frente. "Eu odeio canhotos" o Escorpião disse ao Príncipe enquanto ria. O agora campeão riu e disse "Eu acho que odeio lutar." E acertou um soco, um raio que cruzou à frente do Escorpião.
Ele caiu, todos ficaram em silêncio. Dez segundos passaram, sessenta. Ele caído, o vencedor de pé, olhando para cima, os olhos vazios. Ele vencera todos, mas não a si mesmo. Sem sorrir ergueu o cinturão.

O Pugilista viu o outro ir embora, para dar as entrevistas de campeão. "Campeão". "Ex-campeão". "Ex-Pugilista". 
Foi nocauteado. Jogou a toalha.