sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Nós somos feios, nós estamos salvos.

Ela me olhava com aquele sorriso torto que fazia dela a criatura mais amável no universo, ao menos para mim. Sorria sem mostrar os dentes e tomava mais um gole de chá em sua xícara favorita. Eu sempre quis saber porque ela amava aquela xícara, ela sempre tentou esconder o motivo até o dia em que seu irmão contou-me que era presente de um ex-namorado, tentei não a assustar quando trouxe o assunto, mas a assustei o suficiente para ficarmos brigados por quase uma semana. Ela amava ainda mais o chá, mas esse sem nenhuma razão particular, apenas o gosto. Eu pensava demais e ela tomava mais um gole e dava um quase sorriso, a sala era toda silêncio, eu ocupado com afazeres que precisava terminar para a faculdade, ela a tomar seu chá enquanto lia o jornal e também a sorrir-me eventualmente. Ela matou o silêncio ao perguntar-me o que pensava sobre a situação de um país árabe qualquer que encontrava-se em guerra civil, coisa sobre a qual todo homem da minha categoria deve ter opinião. Eu respondi-lhe a mesma opinião que todos esses outros homens dessa categoria.
Ela tentou prolongar a vida de nossa conversa ao falar uma coisa aleatória sobre famosos ainda mais aleatórios, percebi a sua iniciativa e colaborei ao proferir toda sorte de eufemismos vituperiosos apenas  para concordar com sua opinião de uma maneira que não ofendesse aquela delicada flor de pouca beleza, uma vez que odiava que eu discordasse dela. Eu apenas sorri.
Ela sorriu-me de maneira ainda mais sem graça, aquele sorriso fez com que me lembrasse de quando a conheci, não era aquela moça que tomava o chá, era uma garota cheia de vida e encanto, sorria mostrando os dentes, que brilhavam com um branco cor de luar. Eu e ela amávamos o luar, passávamos noites debaixo dele a beber vinho e rir das mais variadas piadas sem graça, mas ríamos porque éramos jovens, éramos lindos, éramos condenados a um fim, seja o fim do relacionamento, seja o fim daquele encantamento, optamos por matar o encantamento mesmo. Ela tomou mais um gole e ajeitou em seu cabelo, a orelha destacou-se como de costume. Eu sempre havia notado que ela tinha uma orelha um pouco grande, que teimava em despontar em meio ao cabelo, lembrei-me de quando tive de sair do país para estudar, ela inventou que nos comunicaríamos somente por cartas e sempre enviava-me junto uma mecha de seus perfumados cabelos, hoje eles não são mais tão cheirosos, e ela nem mesmo tem toda aquela graça que via naquelas cartas, onde a ausência só fez o amor aumentar e o coração afeiçoar-se ainda mais. Ela era maravilhosa em sua juventude, mas não sei se sinto falta disso, admito meu egoísmo, ela era maravilhosa demais, se continuasse daquela maneira ela logo perceberia que não a mereço, sem contar que muitos tentaram tirá-la de mim, houve até uma vez que entrei em uma briga por ela, nem preciso dizer que levei a pior.
Ela perguntou-me repentinamente se eu ainda a amava, como se estivesse a ler meus pensamentos. Eu espantei-me, ela olhou-me penetrantemente e fez um movimento com a cabeça como quem acentua o tom de seu questionamento, ponderei por volta de dois minutos enquanto analisava aquela que estava diante de mim. Ela era diferente da moça que eu conhecera há quase uma década antes, mas ela era pior? Ela era sim menos bonita, mas muito mais sábia. Ela era sim menos calorosa, mas compensava com sua calma. Ela era mais tediosa, mas compensava com sua compreensividade. Eu respondi que sim, que ainda a amava, talvez mais ainda do que antes, era bem melhor ser assim. Nós somos sim feios, mas nós estamos salvos.

Nós somos feios, nós estamos salvos.

Do alto de nossa baixeza, do topo do fundo do poço, os víamos.
Imponentes, altaneiros, sempre o centro das atenções.

Eles são lindos, são fortes, são perfeitos.
Somos feios, somos fracos, somos defeituosos.

Veja só aquele, como é incrível, voa tão alto, brilha como o Sol, corre como o vento. É magnífico, até cair. E cai. cai. cai. Uma queda tão horrível, que não posso evitar de fechar os olhos - outrora focados apenas e sempre nas fantásticas criaturas -, ouço um som de ossos a se espatifar.
Veja só você, não, não veja, não ligo, não ligamos.

Voam, com graça, depressa, para o alto, para frente. Mas uma hora caem, se pararmos para pensar, sempre caem. A maioria, sempre cai, raros são os que planam para sempre, encontrar um lugar ao sol, no topo do Olimpo.

Cai, cai, cai. Caiu lá embaixo, na fenda que nem mesmo nós temos a coragem de entrar, onde criaturas abomináveis residem, gritam, choram. E quando cai, não levanta, mas se levanta, levanta com semblante tão grotesco, que empurramos, enxotamos, chutamos, xingamos, cuspimos de volta. Sai daqui, monstruosidade, não és digna nem de nós. Se cai - ou quando -, é melhor esquecer.

Voo breve, voo curto, se comparado à eternidade no abismo, no infinito da humilhação.
Que bom que não voamos.

Nós somos feios, nós estamos salvos.