sexta-feira, 6 de maio de 2011

Acidente de carro,

Nós estávamos a uma velocidade incrível, eu sentia algo parecido com estar vivo pela primeira vez.


Em minha própria vida eu sempre fora apenas mais um. Passei-a por todo o tempo na calçada, apenas vendo todos correndo por aí, vendo-os tão alegres a acelerar, a viver tão intensamente.


Nós iríamos bater a qualquer momento, a morte era iminente, eu bem sei. A qualquer momento nos chocaríamos com algum obstáculo e, pronto, como passe de mágica nada mais de nós existiria.


Mas um dia você chegou, lentamente, mas eu a notei, não haveria como não notar. Todos queriam ser lindos como carros esportivos, mas você não, você só se preocupava em ser você, era singular feito uma kombi hippie.


Nós estávamos à beira de uma possível morte, e eu me importava? Sentir-me quase-vivo era bem mais que toda minha vida havia proporcionado-me até hoje, morrer ao seu lado era uma maneira tão celestial de se morrer.


Acabamos nos conhecendo tão bem, tendo tanta cumplicidade. Quando fui ver já estava ao seu lado, e você vivia aceleradamente. Você vivia intensamente, por mais que não parecesse.


Nós atingimos aquele caminhão de dez toneladas e devo admitir, morrer ao seu lado foi um prazer, o privilégio foi todo meu.


Depois do acidente não me lembro de muita coisa, mas de antes lembro-me menos ainda. Eu estava morto antes ainda do carro bater.

Acidente de carro.

As luzes vermelha e azul piscavam ininterruptamente; as sirenes ensurdeciam; pessoas se reuniam.
"Para trás, não há nada para se ver aqui!" Gritavam os policiais enquanto isolavam o perímetro. Todos tentavam ver o que tinha acontecido, saiam de seus carros, pois a rua tinha sido bloqueada, juntavam-se ao aglomerado, subiam nas pontas de seus pés e ficavam chocados com a cena.
Não descreverei o que as pessoas viam, acidente de carro é sempre igual, carros e pessoas jogadas. Imagino que vocês não são do tipo que ficam curiosas para ver a cena, ver a tragédia, espero que vocês sejam melhor que isso.
Continuando com minha história, eu, infelizmente estava preso no trânsito que se formou com o infeliz acidente. Estava bem próximo, na verdade, vi o acidente acontecendo, coisa bem infeliz.
"Nossa, cara, fiquei sabendo que o carro azul capotou umas três vezes, o passageiro até saiu pelo parabrisas, foi coisa feia." Disse um dos espectadores animado.
"Caracas! Me disseram que o vermelho tentou desviar do azul e bateu num poste, derrapou e acabou na mureta." Respondeu um que estava do lado.
"E o do carro prata, caras, parece que tava bêbado, tava correndo, bateu no azul e começou tudo, foda, foda." Completou mais uma das pessoas que assistiam ao acidente como quem vê o final da novela.
Eu não podia acreditar naquilo que via, tudo o que disseram podia ser verdade, podia ser invenção, mas eram irrelevâncias, eles não precisavam saber disso, precisavam saber que houve um acidente e deveriam usar um caminho alternativo, deviam saber como evitar esse tipo de tragédia, mas não, queriam saber quem brigou com quem, quem girou mais, quem ganhou mais pontos de audiência.
"Eu fiquei sabendo que a família deles ficará arrasada ao receber a notícia, provavelmente chorarão, sofrerão muito. Afinal, eles tinham uma vida inteira pela frente, já tinham conquistado algo, eram jovens para ir embora. Será difícil pra eles, afinal eles eram humanos." Eu disse antes de deixar meu carro abandonado.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Sobre guarda-chuvas.

A chuva chovia chuvisco.
As gotas caíam frias na minha pele,
A chuva chove, encharca.

Eu estou sozinho, no meio da torrente.
Chuva, choro.
Estou sozinho na enchente.

Chateado, choro uma chuva.
Chocado, chove meu choro.

A chuva enche as ruas,
até que eu acho uma chama.
No meio da chuva, da escuridão,
alguém me ergue a mão,
que segura um guarda-chuva.

"Shhhh, não chore"
Ela me diz.

Chhhhh, ainda chove.
Mas eu não me molho,
porque ela me protege,
sob seu guarda-chuva.

E com ela eu espero,
pelo raiar do sol,
com ela eu aguento,
todo o mal.

Sobre guarda-chuvas.

Noutro dia estava a chover deveras
Era uma dessas tardes tão paulistanas.
E eu, a ver tantos guarda-chuvas
Comecei a pensar sobre tudo isso,
Cada gota que caía era um pensamento que surgia.

Aqueles objetos, tão simples
Com uma direta haste e uma triste tela
Parecem proteger as pessoas das vidas delas.
Mesmas pessoas que, sem eles estariam tão tristes,
Sob sua proteção são outras.

Queria eu ter uma proteção assim para todas as más coisas.
Façam-me guarda-sofrimentos, guarda-dores
Guarda-tristezas e guarda-corações-partidos.
E deixem que sobre mim chova alegria, que caiam os amores,
Que sempre ao meu lado fiquem meus queridos.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

O espantalho.

Ele era um espantalho, fora feito, como todos os outros espantalhos, de trapos e preenchido com palha. Usava roupas velhas e surradas do dono da plantação de arroz que protegia. Era um espantalho como qualquer outro, levava um chapéu de palha na cabeça, para algumas crianças da região possuía até um aspecto assustador, contavam lendas sobre ele, de que ele criava vida à noite e atacaria as crianças bagunceiras.
Mas na verdade ele era um bom espantalho, mesmo não sendo lá tão feliz, e era completamente inofensivo para as crianças. Ele sorria o tempo todo, não de alegria, mas apenas porque haviam costurado seu rosto daquela forma. Ele, como já disse antes, não era feliz, e isso por causa de sua eterna solidão, visto que tanto pássaros quanto crianças o temiam e os adultos o viam apenas como um objecto para espantar pássaros - coisa que de fato ele era.
Assim continuava o triste espantalho, sempre solitário em meio à sua plantação - pois, com toda a solidão, aquele arroz era tudo que tinha - até que um dia, durante um cochilo seu em uma tarde, acordou com um lindo canto. O espantalho ficou então enamorado pela linda voz, e olhou para todos os lados à procura da cantora. Era uma formidável Tiê-sangue, de, apesar do nome, bela plumagem bege. É claro que tudo isso aos olhos do nosso enamorado espantalho, porque, mesmo com um certo charme, ela não era a Tiê-sangue mais bela do mundo.
Ao primeiro momento, o espantalho ficou completamente embasbacado pela doce Tiê, mas logo recobrou os sentidos e foi cumprir sua função.
- Saia daqui! Deixe minha plantação em paz!
A Tiê assustou-se, parando de cantar e depois recuando.
- Desculpe-me, senhor espantalho, não tenho a intenção de destruir sua plantação.
- Mesmo se não tivesse, pode ir saindo! - O espantalho mostrava-se bravo, mas era apenas de sua costurada boca para fora.
- Perdão, realmente, eu apenas me perdi de meu bando, você não viu um bando de outros Tiê-sangues indo passando por aqui?
- Oh, desculpe-me então, eles foram para o sul, se não me falha a memória.
- Muito, obrigado, senhor espantalho. Até mais. - disse a Tiê fazendo algo semelhante a um sorriso com seu bico.
O espantalho nada mais disse, apenas manteve seu tradicional sorriso na cara, mas dessa vez era sincero. Ela foi embora a cantar, e ele nunca mais esqueceu aquela maravilhosa voz. Até hoje ele se lembra dela, por mais que ela tenha partido e nunca mais vá voltar, para ela ele foi apenas um espantalho qualquer, mas para ele ela foi o único ser que o tratou como mais que algo feito para assustar, ela foi o único ser que o respeitou, e disso ele nunca vai esquecer.

O espantalho.

- Haha, espantalho, feio, bobo! - Gritavam em coro as crianças enquanto passavam pela ponte que o espantalho guardava. - Ninguém mais tem medo de você, vá embora!
O espantalho, desmotivado, cansado, simplesmente ignorava todas as ofensas. Sentava-se numa pedra, tirava seu velho chapéu, passava os dedos finos pelo cabelo de palha e suspirava. Olhava para cima com seus olhos de botão e sua boca costurada se desdobrava num arco de tristeza.
De longe, uma garota sempre o observava, com dó de sua dôr, mas nunca fazia nada, pois do espantalho sentia pavor.
Todo o dia a cena se repetia: o espantalho na ponte, as crianças passando, ele se aproximava, elas o atacavam, ele ia embora, sentava-se numa pedra.
E a garota sempre observava, enrolando suas tranças, criando confiança.
Um dia, depois de muito esperar, o espantalho ela foi ajudar.
- Espantalho idiota, você não assusta ninguém, vai embora! - Elas diziam pulando.
- Deixem-no em paz, não vêem que mal ele não faz? - A garota disse aos berros, ficando entre o espantalho e as crianças de braços abertos. - Ele só quer um amigo, não representa perigo.
As crianças pararam, não percebiam as intenções do espantalho, só viam como ele era feio e diferente, e por isso o rejeitavam. Eles se distanciaram e deixaram a garota falar com ele.
- Por que você resolveu me ajudar? Ninguém nunca me ajuda, não faça isso. - Disse o espantalho com um ar de espanto na voz.
-Oras, todos merecem uma chance, mesmo que por um instante. Não é porque você não é normal que fará algum mal. - A garota respondeu, e seu rosto enrubesceu.
O espantalho olhou para cima, bem distante, se seus olhos não fossem botões, com certeza teriam brilhado.
- Então você realmente quer me ajudar? Está disposta? - Ele indagou agitado, e quando a menina meneou a cabeça dizendo que sim, abraçou-a. O abraço era forte mas macio, ele não a soltava. Porém, começou a apertar mais, a pegou pelos braços e a jogou pela ponte. A garota não teve reacção além de cair.
As crianças assombraram-se com a acção do espantalho e foram ajudar a garota. - Quem será o próximo que irá para a a água?! - Rugiu o espantalho. Ergueu os braços e tentou pegar o primeiro, que escapou e fugiu assustado. Os outros com medo foram atrás dele e deixaram a garota com o doentio boneco de palha.
Voltando para onde jogara a garota o espantalho foi conferir seu trabalho.
- Nem todo mundo é bom, ou quer amigos, eu não sei se você entenderá, mas a minha função é essa: assustar. Eu sou um espantalho, eu espanto. Mas agradeço o seu carinho e por isso te deixarei ir de fininho.
A garota, que havia caído n'uma espécie de ninho, no qual o espantalho dormia, não sabia o que dizer. Com medo apenas sorriu, olhou para seus olhos de botão, olhou para o chão e levantou-se.
- Eu ainda quero que seja meu amigo, mesmo que eu corra perigo. Eu não tenho medo. - Lhe disse em segredo, antes de partir.
O espantalho nada disse. Sentou-se na pedra e olhou para o céu, mas se seus olhos não fossem botões, teria derrubado uma lágrima de solidão.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Amnésia.

Quem sou eu?
Onde estou?

Que fazeis aqui?
Quem sois vós?

Não me lembro de nada.
Esqueci-me de tudo.

Que faço eu agora?
Recomeço minha vida?

Estou com medo.
Estou confuso.

Não reconheço ninguém.
O rapaz do espelho.
As pessoas ao meu lado.
Minha mente é plena escuridão.
Medo. Confusão.

Oh, vejam, lá se vai minha amada.
Linda, com pele de marfim.
É a única para mim.
Sem ela não sou nada.

Dela eu me lembro.
E já consigo ver claramente.
Para celebrar esse momento.
Cinquenta poemas eu farei.
Para aclamar esse amor.