domingo, 12 de maio de 2013

Oração.

O maior corte da minha vida aconteceu por volta de uns oito ou dez anos de idade, mamãe antes disso sorria e dizia "dorme com os anjos". Eu adorava os anjinhos, eu deitava na cama, esperava mamãe cantar uma canção de ninar daquelas bem bonitinha ou me contar uma história – eu adorava aquela da princesa que só descobriam que era princesa quando ela sentia que tinha dormido em cima de uma ervilha mesmo com um montão de colchões, eu sempre ficava tontinho tontinho com a ideia de que ela era assim tão delicada – aí depois de tudo isso mamãe me cobria, dava um beijo quente na testa e dizia "dorme com os anjos". Depois disso era tudo festa, os anjinhos iam aparecer e eu me metia debaixo dos meus cobertores e sonhava com eles, meus anjinhos assim tão lindos. Um grandinho, devia ter a idade do meu irmão mais velho, esse anjo sempre tinha uma cara de sério, mas ele brincava com a gente mesmo assim, acho que mais pra cuidar de nós. O do meio era um pouco mais velho que eu, mas que anjo mais safado, viu? Vivia pulando de cá pra lá, batendo as asinhas, tirava a auréola e girava no dedo, jogava daqui pra ali, nunca entendi como ele fazia aquilo, até levantava a bata e mostrava o pipizinho por aí. Já a menorzinha era uma fofa, era do meu tamanho e não brincava muito, não, era mais quietinha. Os olhinhos azuis, clarinhos clarinhos, os lindos cabelos loiros, caíam pelos ombros e brilhavam tanto, mesmo que me visitassem só de noite, e o sorriso tímido que ela sempre me dava quando vinham me visitar, a bata parecia um vestidinho de noiva, lembrava porque tinha visto um igual nas fotos do casamento da mamãe e do papai. Aí eu fazia de conta que ela era minha namorada ou coisa assim e ela gostava tanto de mim.
Só que um dia mamãe foi e veio com esse tal de Deus. Era uma noite como todas as outras, já havia me deitado e ela subiu, abriu a porta do quarto, quando começara a me empolgar e esperar por minha noiva a minha mãe disse da porta "dorme com Deus". Fiquei abismado, a minha esposa não vinha aquela noite? E quem era aquele Deus? Lembrava de ter ouvido falar dele algumas vezes, quando algo de ruim acontecia os adultos gritavam "Meu Deus", "Deus do céu" ou coisa similar. Sem contar que ele parecia um completo censor, pois toda vez que eu fazia algo de errado eles diziam que Deus estava vendo. Algumas semanas ela nem mesmo ia ao meu quarto, algumas vezes apenas dizia "dorme com Deus" enquanto eu me encaminhava para o meu quarto. A culpa era toda daquele Deus.
A esse ponto já não sabia mais o que fazer, procurei ajuda dos amigos mais próximos e o Dênis – um  menino com quem estudava que era muito barrigudinho e muito inteligente – disse-me que a mãe dele lhe havia que Deus era muito forte e bom e que ele podia realizar nossos desejos se fizéssemos a ele uma oração, até parece que era bom, fora ele mesmo que me tirara a minha querida. Eu já havia ouvido falar nisso de oração, mamãe me ensinara uma oraçãozinha para Nossa Senhora uma vez e também tinha um tal de Pai Nosso, mas nem dava bola para isso, só pensava na minha anjinha, morria de saudades dela. Segui então os conselhos do tal Dênis, chegada a noite ajoelhei-me em frente à cama, apoiei os cotovelos no colchão e lembrei da minha princesa, ela sentiria todas as madeiras lá embaixo, era tão pura e angelical. Fechei os olhinhos e falei com Deus. O mais engraçado é que, segundo o Dênis, você não precisa falar de verdade pra falar com Deus, ele ouve os nossos pensamentos e tá dentro da gente mesmo, achei estranho eu precisar fazer tudo isso então, se ele ouvia os nossos pensamentos ele não devia saber o que eu queria? Orei mesmo assim, e continuei por um bom tempo, mas nunca mais vi o meu anjo de volta.
Foi assim até os quinze anos, quando a conheci. Era um dia comum na escola, eu passava por todos sem reparar em ninguém, mas por acaso esbarrei nela e ela fez uma piadinha sobre mim. Sim, eram os mesmos cabelos, sim, eram os mesmos olhos. Não estava com o vestidinho, mas isso porque usava o uniforme da escola. Agradeci Deus, agradeci tanto quando cheguei em casa. Demorou mas atendeu meu pedido, lá estava a minha namorada, a minha noiva, a minha esposa! Sim, lá estava ela em carne e osso. Conhecemo-nos melhor, passamos um certo tempo juntos mas logo veio outro corte, sem Deus nem nada, só alguém mais bonito e mais engraçado.
Ajoelho-me em frente à cama, apoio os cotovelos e fecho os olhos.

Oração.

"Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos Vossos fiéis, e acendei neles o fogo do Vosso amor"
Ele parava por um segundo e repetia as palavras
"O fogo... do amor."
Continuava a Invocação e só então abria os olhos, lentamente, as palavras ainda queimavam no seu peito. Sentava-se na cama, zonzo, como se não soubesse onde estava, apesar de ter acordado a vida toda nessa cama, nesse quarto. "Amém"

Levanta-se, os pés pesavam, sentia-se preso a grilhões, sentia-se preso. Andava em círculos, pensava; planejava, mas sabia que não podia fazer nada. No meio do quarto, parava, afastava as mãos do corpo, fechava os olhos e dizia, em silêncio, "Divino Jesus, eu Vos ofereço este Terço que vou rezar contemplando os mistérios de nossa Redenção." Caminhava ao lavatório, enchia suas mãos de água fria que escorria. A torneira chiava. Lavava o rosto, as mãos, purificava-se com a água que saia da torneira. A torneira chiava. Fechava-a. Olhava para o espelho, para seus olhos. Abria a torneira novamente. De novo ela chiava. Molhava outra vez o rosto, a fronte. A torneira que chiava foi fechada. Se olhou. Os olhos pareciam sujos, olhos marrons, fortes. Sujos.

Sentado na cama, segurava, firme, a cruz. Fazia o sinal da cruz, seu braço esquerdo latejava, uma dor que já não mais existia, mas que lhe marcou. Com dor aprendeu a fazer o sinal da cruz com a mão direita, a escrever com a mão direita.

"Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra."
Saia de seu quarto, a mão sempre enrolada em seu terço. Apenas meneava a cabeça, confirmava, declinava, nesses dias, não se importava muito para o que acontecia ao seu redor. Sabia que algo pior estava por vir mais tarde, e seguia orando.

"Pai Nosso que estais nos Céus"

Descia para o salão principal e dejejuava com seus irmãos. "Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco"
Pegava um pedaço de pão e dividia com quem sentava ao seu lado.

"Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco"

Levanta-se a agradecia pela refeição."Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco"

Seus dedos finos, frágeis, chegavam à quarta das grandes contas, passou o dia revezando seus afazeres, suas orações; seus pensamentos, seus lamentos; suas vontades, seus desejos.

Estava sentado no confessionário, aguardava a próxima confissão. O sino batia, uma, duas, oito vezes. Seu coração, oitocentas.

"Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, assim como era no princípio, agora e sempre (e pelos séculos dos séculos), Amém"
A porta de madeira rangeu, ouvia os passos, calmos, frívolos. Ela abriu o estrado para vê-lo.
"Ave Maria Puríssima"
"Sem pecado concebida. Abençoe-me, Padre Fábio, pois pequei. Há sete dias fiz minha última confissão."
Ele fechava os olhos, pensava em tudo que aprendeu, orava para si mesmo "Pai Nosso que estais nos Céus"
"Meus pecados... Meu pecado é o seguinte:"
E ela lhe dizia com detalhes, sua voz aveludada, macia. Dizia-lhe de seus pecados, seus adultérios, dizia como caía na tentação. Com detalhes, ele imaginava, ele traía, era traído por seu corpo. Ela lhe dizia, como era tocada, dizia, como se sentia, como era bom.

Ele, num segundo de tentação, a olhava, olhava por inteiro. Ela, ajoelhada, os olhos fechados, as mãos juntas. Como era bela, como era pura. As lágrimas escorriam de seu rosto. As lágrimas caíam, ele caía, virava-se, não podia olhá-la, não podia, não podia nada.

Por fim, ele dizia.

"Já sabes o que te direi, reze o terço o dia inteiro, pense se é isso que queres, o que amas de verdade. Reflita, minha filha, reflita."

Ela concordava, os olhos marejados, os lábios a fraquejar. Segurava o choro, era forte, era fraca. Dizia"Senhor Jesus, Cordeiro de Deusque tiras o pecado do mundo, reconcilia-me com o Pai pela graça do Espírito Santo;purifica-me de todos meus pecadose faz de mim um homem novo. Amém."

"O senhor perdoou teus pecados, Ide em paz." Ele respondia. Ela agradecia e ia, em paz.

Ele ficava lá, sentado, não ouvia mais nenhuma confissão, não podia, não conseguia.

Esperava, esperava quanto tempo for. 

"Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós.

Rogai por nós, santa Mãe de Deus.
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo."

Levantava-se, e ia, sem paz.

domingo, 28 de abril de 2013

Lar

Me aninhei no teu abraço,
me escondi no teu abraço,
me afoguei no teu abraço.
No teu abraço,
eu chorei.

Não era medo, 
toda minha vida tive medo.
Era coragem, braveza.
É isso que sinto ao teu lado,
sinto vida, vontade de ser melhor.
De brigar por tudo
brigar por ti.

Os ônibus passavam por nós,
os carros, o tempo
a vida
que podia me levar, levar pra longe.
Pra casa.

Não era medo, 
não era angústia.
Como fiquei feliz.
Fiquei, feliz.

Eu te perguntei qualquer coisa,
esperando qualquer resposta.
Pra poder sorrir,
e lhe dizer.
"Então eu vou ficar."

E se por acaso passou por tua cabeça
se me arrependeria por não ir pra casa,
eu lhe respondo, meu bem:

Estou contigo,
estou feliz.
Não estou em casa,
mas estou no lar.

Lar.

Nascido e criado na cidade antropófaga
Perdido no mundo por buscar um lar
Na cidade sem identidade,
Na terra sem cara.

Roubamos deles tudo que queremos,
Comemos, digerimos e tentamos ter uma casa
Lutamos, perdemos, tentemos ter uma causa
Mas somos apenas perdidos

Não tenho lar,
Porque devo ser o mesmo que o rapaz da minha rua?
Não sou o mesmo que o rapaz da minha rua. 
A única coisa que temos em comum é a rua
E a rua eu logo abandono.

Na verdade, sou o mesmo que a moça de além-mar
Então porque não sou o mesmo que a moça de além-mar?
Se sou o mesmo que a minha querida moça?
Sim, tenho lar.

sábado, 20 de abril de 2013

A Chuva.

Vivia com a chuva como um adolescente que se envergonha dos pais. Cansara-se daquele lugar maldito já havia um bom tempo, não havia um dia em que não caísse pelo menos uma só gota do céu. E mesmo enquanto não chovia a vida não ficava muito melhor, as nuvens carregadas faziam questão de ficar por ali mesmo e não davam chance alguma para o Sol, era impossível manter-se bem humorado naquele lugar.
Se fazia planos, a chuva os desmanchava, se pensava em dias melhores, o céu fechava. Lugar maldito, lugar que não sabia ser feliz, todos só trabalhavam e passavam por aqui e ali tão fechados em seus sobretudos, protegendo-se com seus guarda-chuvas e guarda-relações. As pessoas de lá já sabiam muito bem como lidar, mas não ela, ela era feliz. Saco de lugar que só tem gente chata, gente que só quer trabalhar e ficar séria. Ela era melhor do que isso, evidentemente, tinha amigos de tantos lugares, tinha gostos tão fenomenais, ela era, realmente, fenomenal e espetacular e fora do comum e extraordinária. Gostava de tanta música boa, via filmes tão profundos, lia livros tão tocantes. Sim, os livros, tinha um excelente gosto para livros, já havia lido todos os clássicos, conhecia tantos autores contemporâneos que se destacavam também. Passava, por esse motivo, grande parte de sua vida em bibliotecas, o que era bom pois assim fugia da chuva e do mundo chuvoso, mergulhando no mundo do fantástico, fabuloso e inacreditável. Foi aí que aconteceu o momento grande da sua pequena vida na gigante cidade, encontrando um livro de um poeta desconhecido, leu.

Chove lá fora.
Chove e a chuva sou eu.
Chovo tudo de errado que há em mim,
Chovo tudo de certo que há em mim.
Chovendo eu sigo toda a vida.


Chovo mas não importo.

Chovo não como outros chovem.
Chovem tempestuosos.
Chovem tocantes.
Chovem comoventes.


Chovo só eu.

Foi então que, como se um relâmpago lhe atingisse, entendeu a chuva. Entendeu a chuva e chorou.

A Chuva.

Chovia no dia que nos conhecemos, a chuva era fraca, como a esperança que eu tinha de darmos certo, uma simples garoa. Lembro-me muito pouco dela, lembro-me muito pouco daquela noite, deixei toda minha memória reservada para teu toque. Mas sei que chovia.
Sempre está chovendo. Por aqui, sempre está chovendo.
E lembro de quando fugimos da chuva, como quem foge do inesperado, com medo de se molhar, com medo de correr o risco. Admito que a chuva era forte, muito forte, como o que eu já sentia por ti. E, já protegidos, meu coração batia forte, e um sentimento inundava meu coração, como a chuva que inunda cidades, violenta e abruptamente.

Chovia, chovia aqui dentro. Ininterruptamente. Até que teu sorriso a interrompeu .
Do teu sorriso abriu um dia belo, um dia quente de verão. Tu abriu o sorriso e o céu se abriu, para não ficar pra trás.

Quando fui atrás de ti, o céu aberto, o sorriso escancarado. O Sol no céu, tu em mim. Choveu, quem diria, choveu. E eu não fui precavido, fui apenas com a cara, a coragem e o amor. E a chuva.
Sem guarda chuva, sem medo. Banhei-me, purifiquei-me. As gotas d'água encontravam minha face sorridente, batiam, se espalhavam. Eu, ensopado, finalmente entendi que não adiantava correr, que me proteger não me protegia de nada. 
Tentar fugir é inútil e os respingos serão amargos.
Abri o sorriso, abri os braços, lhe dei um abraço e ganhei um beijo.
E finalmente entendi a magia do beijo na chuva.
Quem está na chuva, é para amar.

sábado, 13 de abril de 2013

Motivos para se amar uma garota.

Um sorriso aberto;
um tímido riso de canto. 

Um abraço longo e apertado;
uma mão que não quer se soltar. 

Todo motivo é uma razão. 

Um ciúme bobo;
um pedido de desculpas. 

Uma canção de amor;
um verso pré-fabricado. 

Uma foto juntos, pendurada na parede;
uma foto escondida na carteira. 

Um beijo de despedida;
um abraço de saudade. 

Toda razão é sentimento.